segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Lucialima by Maria Velho da Costa

Lucialima Lucialima by Maria Velho da Costa
My rating: 3 of 5 stars

Maria Velho da Costa escreve belissimamente, uma escrita intelectual, riquíssima de vocabulário, de metáfora, mas ao mesmo tempo com uma atenção sublime ao pormenor, com personagens credíveis (como Freddie que, segundo Eduardo Pitta, é "uma bicha espantosa") em cenas que, de tão realistas ou dramáticas, acreditamos terem sido vividas ou presenciadas pela autora, como neste encontro de uma criança de dois anos com uma velha algarvia, vendedora de amêndoas, que vem montada numa burra acompanhada do seu burrito recém-nascido:
"Brava, hã?", repete a mulher debruçada sobre ela, "ora atão donde vem o cotumiço?" E Lucinha enceta uma conversação que lhe parece bastante possível.
- De li.
- Casinha alugada ao mês, atão não? E que te dizem?, que não andes aqui no carreiro, não passes o cancelim, podes ter maus encontros, atão não?
- Nã.
- Pespineta patranheira e tanto, ora atão. Em quantos vais?
Lucinha espeta dois dedos no ar. Januária diz-lhe, "Chega" e ela concorda, abraça pelo cachaço o animalinho e diz, "Chê", levantando a cara para a mulher que entretanto se assentou bufando no muro baixo, tecido de pedra com tojo e urtiga, o do lado de cá.
- Chega não, que ainda agora não viste nada. Se não te ferrou o jeriquinho lá sabe para o que estás guardada. Burro de meses, menino da Lua e o que a Lua beija não medra ao Sol. Acautela-te serigaitinha. Queres uma amêndoa?, toma lá treze, uma para cada mês e outra ao cornudo. Assim houvera feito para a minha. Vade retro.


A maior parte dos contos deste livro, porque parece tratar-se de um livro de contos, ou de um novo género de romance? (os personagens ressurgem em contextos diferentes e o capítulo final parece uma assembleia geral) é de uma grande complexidade, pleno de referências e implicações, que precisa de ser lido devagar, refletido e cruzado com informação que já veio ou que há-de vir, não aconselhável, portanto, a leitores apressados, como nesta reflexão de Ramos:
Na minha idade, quando sou amado, ou requerido presente tanto quanto um corpo que envelhece e mente que ancilosa podem sê-lo. Que fazemos aqui? As paredes têm delicadas circunvoluções setecentistas, cromados brilham e veludos e estuque absorvem luz. Há telas nas paredes, reconheço-os - os nomes. Dispo sem gosto estes corpos cujo cóccix ocultamente opresso numa postura inverosímil aguenta a coluna que sustenta o nome que tem uma cabeça. Como os ramos do meu nome as garras das costelas contêm-lhes alvéolos sangrentos desenhados ao pez da nicotina. O Chile caiu há dias, quem de nós pensa nisso já? Por cima do andar alto as estrelas divagam numa arborescência muito mais eterna que estas criaturas com vísceras, ainda mais remotas. Não deveria ter vindo aqui, porque colectivizar esforços da mais fútil das manifestações - o desenho de sinais gráficos sobre resíduos celulósicos, a mão que mima o comando da descarga espástica do cosmos.

Um livro, em suma, que estimula a ler mais textos da autora e que, para além disso, ainda pode ser comprado apenas por 4,90 euros!

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