sexta-feira, 20 de maio de 2016

Gratidão by Oliver Sacks

Gratidão Gratidão by Oliver Sacks
My rating: 4 of 5 stars

Este pequeno livro colige os quatro últimos ensaios que Oliver Sacks publicou no The New York Times, antes de morrer, em 2015, vítima de um cancro incurável. Com exceção do primeiro ensaio, "Mercúrio", os restantes foram escritos já depois de Sacks saber que estava condenado a morrer num prazo relativamente curto, mas de todos eles se desprende um grande amor pela vida e pela natureza, uma imensa gratidão por tudo o que nos é dado experimentar enquanto estamos vivos, "por podermos contemplar surpreendidos o pontilhado brilhante da Via Láctea numa noite escura de verão."

Dos quatro ensaios, o mais marcante é, porventura, o último do livro e o último que o autor escreveu poucos dias antes de morrer, "Sabat". Nele, Sacks recua até à sua infância para explicar com nostalgia o que era o Sabat judeu, o dia em que o ciclo semanal de trabalho infernal, correria e preocupações era interrompido para contemplação tranquila do divino. Mas Sacks afastou-se da religião quando a mãe soube da sua homossexualidade e o acusou, citando as Escrituras, "És uma abominação. Oxalá nunca tivesses nascido."

Sacks foi um homem da ciência, curioso, um médico preocupado com a salvação de vidas, mas também fascinado pelos elementos inertes da química. Nunca mais se reaproximou da religião, nem mesmo quando estava a chegar ao fim da sua vida e recordou com ternura o Sabat da sua infância: "E hoje, enfraquecido, sem fôlego, com os meus músculos outrora firmes debilitados pelo cancro, dou por mim a pensar, cada vez mais, não no sobrenatural ou no espiritual, mas no que significa viver uma vida boa e digna de ser vivida, de modo que nos sintamos em paz connosco. Descubro que os meus pensamentos se voltam para o Sabat, o dia do repouso, o sétimo dia da semana, e talvez também o sétimo dia da nossa própria vida, quando sentimos que fizemos o nosso trabalho e que, com a consciência em paz, podemos descansar."

Como referiu Christopher Hitchens em Mortalidade, se, quando se aproximar a minha hora, eu pedir para me converter, saibam que eu estou louco, e, por favor, não mo permitam.

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Era Uma Vez em Goa by Paulo Varela Gomes

Era Uma Vez em Goa Era Uma Vez em Goa by Paulo Varela Gomes
My rating: 4 of 5 stars

Graham, um inglês, entra pela fronteira terrestre de Goa em direção à mítica praia de Anjuna, que vira numa fotografia paradisíaca em casa de um amigo em Bombaim. Estamos em 1963, a Índia de Nehru acabou de invadir a colónia portuguesa e Graham é moreno, poderia bem ser um "pacló", o que levanta dúvidas às novas autoridades do território, em estado de alerta contra possíveis infiltrações dos antigos administradores. Quando finalmente consegue chegar a Anjuna, viajando em camiões e camionetas (com velhos ao colo), carroças puxadas por búfalos, à boleia, depois de inúmeras peripécias (acolhido por um médico goês, encharcado pelas monções, ameaçado com uma pistola por um agente da PIDE, apanhando boleia de um aristocrata local que tem, de visita, o escritor Graham Greene...), descobre que a realidade não corresponde frequentemente ao mito, sendo muitas vezes pior, mas podendo ser, por vezes, muito melhor e surpreendente.

Este é um livro de viagens a fingir! A fingir porque é narrado na primeira pessoa, por Graham, um inglês, quando o autor é Paulo Varela Gomes, um português; a fingir porque descreve uma viagem que não aconteceu, embora saibamos que o autor conhece bem Goa por lá ter vivido alguns anos; a fingir porque o próprio autor o confessa, em divertidas notas de rodapé. Mas apesar de ser a fingir, consegue proporcionar-nos uma emocionante viagem a uma época em que Goa já não era portuguesa e católica, mas ainda não era indiana e hindu, quando ainda se falava português e concanim, mas já se começava a aprender inglês nas escolas, numa época em que ainda não tinham chegado as hordas de turistas, primeiro os hippies em busca de um Shangri-La no Índico e depois dos gigantescos resorts "all-inclusive" à beira-mar.

Um livro de viagens é como um rio, vive da dinâmica do caminho, da perseguição tenaz de um destino, de um objetivo. "Era uma Vez em Goa" é também um rio que corre inicialmente muito forte, montanhoso, mas que, com a chegada a Anjuna, acalma como se entrasse numa albufeira de uma grande barragem que lhe impede a marcha. Aí chegado, "Era uma Vez em Goa" parece-se mais com um romance do que com um livro de viagens. Mas esse lago sem saída aparente é indispensável para que Graham se descubra (no pedaço de escrita mais poderosa de toda a narrativa) e descubra que o seu destino é prosseguir a viagem.

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terça-feira, 10 de maio de 2016

Dançar a Vida, Memórias by Jorge Salavisa

Dançar a Vida, Memórias Dançar a Vida, Memórias by Jorge Salavisa
My rating: 3 of 5 stars

O percurso profissional de Jorge Salavisa, com uma primeira etapa estrangeira, onde conviveu com bailarinos, coreógrafos, empressários e aristocratas famosos, entre os quais um jovem Nureyev e Margot Fonteyn em final de carreira, e uma segunda etapa em português, com a sua passagem pelo saudoso Ballet Gulbenkian, pela CNB, Opart e Teatro São Luiz, onde se centra no desenvolvimento de jovens bailarinos, mas também na apresentação em Portugal de grandes nomes, como Pina Bausch, mas onde a intriga política já interfere com os seus desígnios artísticos.

O primeiro capítulo é excelente, arrasador mesmo! (pode ser lido aqui). Parece lançar as memórias de alguém que andou distraído da vida e lhe descobriu o valor apenas quando confrontado com um cancro. A forma franca e desapaixonada como Jorge Salavisa relata as subsequentes tentativas de suicídio frustradas e a descoberta no IPO de situações incomparavelmente mais injustas e graves que a sua é desarmante. O estilo de escrita mantém-se simples e intimista ao longo de todo o livro, mas as elevadas expectativas criadas com o primeiro capítulo ficam por satisfazer. Virada a última página, ficamos a conhecer todo o percurso profissional do autor, mas ficamos sem saber quem era esse homem que fez essa descoberta surpreendente aos setenta anos de idade, o que sentiu ao longo da vida, quem amou.

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