sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Memórias Póstumas de Brás Cubas by Machado de Assis

Memórias Póstumas de Brás Cubas Memórias Póstumas de Brás Cubas by Machado de Assis
My rating: 5 of 5 stars

O fidalgo carioca Brás Cubas apresenta-nos as suas memórias de uma vida inteira, incluindo algumas inconfidências de menino que resultaram no nascimento da "flor do arbusto", a sua paixão adolescente por Marcela, uma mulher de muitos homens, que duraria "quinze meses e onze contos de réis" e o levaria a ser expatriado para cursar direito em Coimbra, a sua relação proibida com Virgília, uma mulher casada, a sua passagem desastrada pelo Parlamento, que não chegaria a dar-lhe Ministério, a sua amizade pelo filósofo alienado Quincas Borba, e os últimos dias, em que resume a sua vida por um conjunto de "nãos".

Surpreendente, este livro, em diversas vertentes! Já repararam no título: "Memórias Póstumas..."? Sim, são póstumas, o livro é escrito pelo próprio Dr. Brás Cubas, depois de morto. E a escrita é superenxuta e vertiginosa. O livro tem 160 capítulos, alguns com não mais que um parágrafo, outros, que o autor quer manter discretos, em que as palavras são substituídas por "..."! E também é uma escrita culta, rica de referências e irónica, mas de uma ironia quase britânica, modesta, incisiva, que não poupa o narrador ou o seu livro e brinca com o leitor.

Este livro, que rompe com tantos cânones da época em que foi escrito, que é tão revolucionário e inovador, quer na sua estrutura, no tom que emprega ou no realismo irónico e quase cáustico, foi recebido com estranheza pela crítica e pelo público brasileiro, mas continua fresco e delicioso nos dias de hoje.

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quinta-feira, 26 de novembro de 2015

A História do Corpo Humano by Daniel E. Lieberman

A História do Corpo Humano - Evolução, Saúde e Doença A História do Corpo Humano - Evolução, Saúde e Doença by Daniel E. Lieberman
My rating: 4 of 5 stars

Como temos o corpo que temos? Não, não foi Deus que o criou ao sexto dia, embora o Génesis seja um dos mais belos texto de ficção já escritos. Daniel Lieberman escreve não-ficção, acredita na ciência e na evolução natural das espécies, e dá-nos uma descrição simultaneamente rica, apaixonante e simples sobre a história do corpo humano, explicando-nos como foi evoluindo para se adaptar ás forças de seleção natural que o foram moldando ao longo dos milénios, e como, face ao progresso aceleradíssimo da tecnologia humana, primeiro com a revolução agrícola e depois com a industrial, o nosso corpo não foi conseguindo adaptar-se com velocidade suficiente e é agora severamente molestado por uma alimentação rica em açúcares e hidratos de carbono, pela vida agitada e poluída das cidades e pelo nosso sedentarismo e falta de exercício físico.

É sempre fascinante compreender como é que o nosso corpo funciona e porquê, e desse conhecimento podem e devem resultar alterações de hábitos e comportamentos que nos proporcionem uma vida melhor, mais saudável e mais prolongada. Se este livro resulta excelente a explicar-nos o corpo que temos (partes I e II), deixa um sabor a pouco quando se trata de nos esclarecer e aconselhar em relação ao que fazer com ele (parte III), mas como se diz, "o ótimo é inimigo do bom" e este livro é muito bom!

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quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O Lugar Supraceleste by Frederico Lourenço

O Lugar Supraceleste O Lugar Supraceleste by Frederico Lourenço
My rating: 4 of 5 stars

Um conjunto de 90 crónicas de Frederico Lourenço sobre momentos da sua vida, sobre arte, filosofia, religião, música, sempre muito informadas e cultas, nomeadamente pela grande erudição do autor sobre a Antiguidade Clássica, sempre muito francas ("o inimigo da alma não é o corpo; o inimigo da alma é o contrário da verdade"), mesmo em relação à sua homossexualidade, embora nunca ultrapassando uma fronteira de intimidade muito pessoal. Um livro para anotar, refletir e aprender.

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terça-feira, 24 de novembro de 2015

Verão Ártico by Damon Galgut

Verão Ártico Verão Ártico by Damon Galgut
My rating: 4 of 5 stars

Uma parte importante da vida de E. M. Forster romanceada para tentar explicar como é que a sua vida pessoal e os acontecimentos do seu tempo, na Inglaterra, no Egito e na Índia, contribuíram e inspiraram o autor para escrever um dos seus grandes romances, Uma Passagem para a Índia.

Damon Galgut leva-nos a conhecer as paixões de Forster, primeiro pelo seu amigo indiano Masood, depois pelo condutor de elétricos de Alexandria, Mohammed el-Adl, bem como as suas deambulações pelo mundo, como as suas visitas a Edward Carpenter, a sua primeira viagem à Índia, para visitar Masood, e a segunda, como secretário do marajá Bapu Sahib, onde é confrontado com o fosso que se alarga entre os britânicos, que governam quase colonialmente a Índia, e os indianos, associando-as a lugares, situações e emoções do best-seller do autor, que teve uma gestação prolongada, só vendo a luz ao fim de 11 anos de escrita e vários recomeços.

Um livro muito interessante e credível, que desperta a curiosidade pela vida de E. M. Forster, soberbamente biografada em A Great Unrecorded History: A New Life of E. M. Forster, por exemplo.

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segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Caim by José Saramago

Caim Caim by José Saramago
My rating: 3 of 5 stars

Caim é condenado pelo seu crime fratricida e foge para vaguear pelo mundo mas, curiosamente, dá por si viajando no tempo e no espaço, e irá testemunhar momentos específicos do Antigo Testamento, chegando mesmo a intervir decisivamente nalgumas situações em que a crueldade e injustiça de Deus são mais flagrantes (o episódio de Sodoma e Gomorra, em que todos são eliminados pelo "crime" de homossexualidade, mesmos as crianças inocentes; a extinção de toda a humanidade, aliás, de toda a vida à face da Terra, com exceção de Noé e da sua família; o castigo dos adoradores do bezerro dourado que esperavam Moisés na base do Monte Sinai; etc.).

A escrita de Saramago é excelente, quase barroca, e o seu sentido de humor afinado (é Caim quem segura o braço de Abraão quando este se prepara para degolar o seu filho, a pedido de Deus, porque o Anjo, que Deus havia enviado para o impedir e lhe dar uma lição de moral, se atrasou...), mas não tenho a certeza se um romance, com laivos de ficção científica, é um meio adequado para criticar a violência e selvajaria presentes no Antigo Testamento, pelo menos a mim, confundiu-me um pouco.

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segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Wise Blood by Flannery O'Connor

Wise Blood Wise Blood by Flannery O'Connor
My rating: 4 of 5 stars

Hazel "Haze" Motes, a 22-year-old, has just returned from the war and becomes a preacher of the Church of Truth Without Christ, a church of his own creation that he uses to spread words against God, judgement, sin or evil.

This is a unique work of "low comedy and high seriousness", where a feeling of lack of purpose mixes with a sense of mysterious predestination to give this novel the right setting to discuss religion and humanity.

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Lucialima by Maria Velho da Costa

Lucialima Lucialima by Maria Velho da Costa
My rating: 3 of 5 stars

Maria Velho da Costa escreve belissimamente, uma escrita intelectual, riquíssima de vocabulário, de metáfora, mas ao mesmo tempo com uma atenção sublime ao pormenor, com personagens credíveis (como Freddie que, segundo Eduardo Pitta, é "uma bicha espantosa") em cenas que, de tão realistas ou dramáticas, acreditamos terem sido vividas ou presenciadas pela autora, como neste encontro de uma criança de dois anos com uma velha algarvia, vendedora de amêndoas, que vem montada numa burra acompanhada do seu burrito recém-nascido:
"Brava, hã?", repete a mulher debruçada sobre ela, "ora atão donde vem o cotumiço?" E Lucinha enceta uma conversação que lhe parece bastante possível.
- De li.
- Casinha alugada ao mês, atão não? E que te dizem?, que não andes aqui no carreiro, não passes o cancelim, podes ter maus encontros, atão não?
- Nã.
- Pespineta patranheira e tanto, ora atão. Em quantos vais?
Lucinha espeta dois dedos no ar. Januária diz-lhe, "Chega" e ela concorda, abraça pelo cachaço o animalinho e diz, "Chê", levantando a cara para a mulher que entretanto se assentou bufando no muro baixo, tecido de pedra com tojo e urtiga, o do lado de cá.
- Chega não, que ainda agora não viste nada. Se não te ferrou o jeriquinho lá sabe para o que estás guardada. Burro de meses, menino da Lua e o que a Lua beija não medra ao Sol. Acautela-te serigaitinha. Queres uma amêndoa?, toma lá treze, uma para cada mês e outra ao cornudo. Assim houvera feito para a minha. Vade retro.


A maior parte dos contos deste livro, porque parece tratar-se de um livro de contos, ou de um novo género de romance? (os personagens ressurgem em contextos diferentes e o capítulo final parece uma assembleia geral) é de uma grande complexidade, pleno de referências e implicações, que precisa de ser lido devagar, refletido e cruzado com informação que já veio ou que há-de vir, não aconselhável, portanto, a leitores apressados, como nesta reflexão de Ramos:
Na minha idade, quando sou amado, ou requerido presente tanto quanto um corpo que envelhece e mente que ancilosa podem sê-lo. Que fazemos aqui? As paredes têm delicadas circunvoluções setecentistas, cromados brilham e veludos e estuque absorvem luz. Há telas nas paredes, reconheço-os - os nomes. Dispo sem gosto estes corpos cujo cóccix ocultamente opresso numa postura inverosímil aguenta a coluna que sustenta o nome que tem uma cabeça. Como os ramos do meu nome as garras das costelas contêm-lhes alvéolos sangrentos desenhados ao pez da nicotina. O Chile caiu há dias, quem de nós pensa nisso já? Por cima do andar alto as estrelas divagam numa arborescência muito mais eterna que estas criaturas com vísceras, ainda mais remotas. Não deveria ter vindo aqui, porque colectivizar esforços da mais fútil das manifestações - o desenho de sinais gráficos sobre resíduos celulósicos, a mão que mima o comando da descarga espástica do cosmos.

Um livro, em suma, que estimula a ler mais textos da autora e que, para além disso, ainda pode ser comprado apenas por 4,90 euros!

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No Coração desta Terra by J.M. Coetzee

No Coração desta Terra No Coração desta Terra by J.M. Coetzee
My rating: 4 of 5 stars

Na África do Sul, numa fazenda de criação de ovelhas rodeada de nada a toda a volta, um patriarca branco é o senhor absoluto, atemorizando a filha única (a narradora) e os seus criados negros. Hendrik, um rapaz negro que aparece na quinta vindo de não se sabe onde, irá ter um papel determinante nos eventos futuros, que resultarão na morte do patriarca, na violação da narradora, que acabará sozinha e amargurada, e no esboroar da quinta, no que parece ser uma metáfora do colonialismo europeu em África.

A narrativa é feita na primeira pessoa, muito entrecortada, por vezes repetida, outras vezes contraditória, reescrevendo a história, como se a narradora estivesse a tentar extrair da névoa da memória o que aconteceu ou o que gostaria que tivesse acontecido, tornando-a por isso muito poderosa e original.

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