domingo, 26 de outubro de 2014

Poemas e Prosas by C.P. Cavafy

Poemas e ProsasPoemas e Prosas by C.P. Cavafy
My rating: 3 of 5 stars

Joaquim Manuel Magalhães em colaboração com o grego Nikos Pratsinis, puseram mão à obra da tradução de alguma poesia e prosa de Cavafy (ou Kavafis, como os autores preferem) com o objetivo de ser o mais fiel possível ao original. Mantiveram as rimas finais e as interiores possíveis, mantiveram a sintaxe dos versos, utilizaram as palavras em português que mais se aproximavam ao significado original do grego falado em Alexandria à época e mantiveram até a pontuação original, mesmo quando parecia não fazer sentido. Tudo para evitar "recorrer a uma tradução interpretativa, mantendo as mesmas flexibilidades de sentido do original."

Apesar de compreender a intenção, não deixo de ficar incomodado com os resultados, que são, por vezes, desconcertantes. Creio que, como alguém dizia, não se faz tradução de poesia: reescreve-se poesia, e tanto é autor o que a escreveu na língua original como o que a "traduziu" para outra língua. É por isso que, apesar de respeitar o esforço dos autores e de compreender que esta tradução fiel despertará seguramente o interesse de muitos leitores, me emocionam mais as versões de Jorge de Sena, em 90 e Mais Quatro Poemas.
Transcrevo a seguir, como exemplo, as duas traduções de um dos mais belos poemas de Cavafy, em que ele se refere a um Marco António derrotado, em vésperas da ocupação de Alexandria pelo seu rival Octávio e do seu próprio suicídio, ao lado da sua amada Cleópatra:

O DEUS ABANDONA ANTÓNIO (versão J.M.Magalhães e N. Pratsinis)
Quando de repente, à hora da meia-noite, se ouvir
passar uma turba invisível
com músicas requintadas, com vozes -
a tua sorte que já cede, as tuas obras
que falharam, os planos da tua vida
que deram em equívoco, não os deplores.
Como preparado há muito, como corajoso,
despede-te dela, da Alexandria que se vai embora.
Sobretudo não te enganes, não digas que foi
um sonho, que foram defraudados os teus ouvidos;
tais esperanças vãs não te rebaixes a aceitar.
Como preparado há muito, como corajoso,
como convém a ti que mereceste tal cidade,
aproxima-te resoluto da janela,
e ouve com emoção, mas não
com as súplicas e as queixas dos covardes,
qual último deleite, os sons,
os instrumentos requintados da turba oculta,
e despede-te dela, da Alexandria que perdes.


O DEUS ABANDONA MARCO ANTÓNIO (versão de J. Sena)
Quando subitamente se ouve à meia-noite
um cortejo que invisível passa
com sublimes músicas e cânticos -
a tua fortuna que desiste, as tuas obras
que falharam, os planos de uma vida inteira
tornados nada -, não te vale chorar.
Como aquele de há muito preparado, corajosamente
diz-lhe adeus, à Alexandria que de ti se afasta.
Acima de tudo não te iludas, nunca digas que foi
apenas sonho, um engano, quanto ouviste:
não te agarres a tão vãs esperanças.
Como aquele de há muito preparado, corajosamente,
e como é próprio de quem, como tu, era digno de uma tal cidade,
aproxima-te firme da janela,
e escuta emocionado, mas não
com lamentos e súplicas cobardes,
escuta, derradeira alegria tua, os sons que passam,
os sublimes instrumentos do cortejo místico,
e diz adeus, adeus à Alexandria que perdeste.



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sábado, 25 de outubro de 2014

Literatura Homoerótica Latina: critérios para uma definição - criterios para una definición by Carlos de Miguel Mora

Literatura Homoerótica Latina: critérios para uma definição - criterios para una definición (edição bilingue)Literatura Homoerótica Latina: critérios para uma definição - criterios para una definición by Carlos de Miguel Mora


Carlos Miguel de Mora sugere os critérios pelos quais se poderá julgar o que seria uma sexualidade socialmente aceitável na Roma Antiga, permitindo, assim, compreender o que seria o homoerotismo: a "transgressão" à norma, do ponto de vista do pensamento romano. Os resultados são surpreendentes! Alguns tabus sexuais modernos seriam pura e simplesmente inexistentes ou incompreensíveis no mundo latino; outros, como aquilo a que hoje chamamos “sexo homossexual”, seria considerado perfeitamente normal e socialmente aceitável em certas situações da antiguidade clássica, como neste exemplo que o autor refere: "Com efeito, (...) os escravos não são mais que objetos, e, tendo em conta o que custavam, que o dono não os penetrasse era para os romanos tão absurdo como seria para nós comprar um Mercedes e deixá-lo na garagem sem o utilizar."

A leitura deste esclarecedor texto obriga-nos a refletir sobre os nossos preconceitos relacionados com a sexualidade: muitos dos aspetos da sexualidade "normal" da Roma Antiga seriam "imorais" nos nossos dias. Muita da sexualidade “comum” hoje seria considerada crime no mundo latino. Assim sendo, o que muitos hoje proíbem ou condenam por contrariar o que é "natural" ou determinado pela Natureza, e logo imutável, parece afinal não ser mais que uma característica cultural da nossa sociedade contemporânea, e muitos dos textos literários catalogados atualmente como “literatura homoerótica latina” não se enquadram, de facto, nesta definição!

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quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Confundir a Cidade com o Mar by Richard Zimler

Confundir a Cidade com o MarConfundir a Cidade com o Mar by Richard Zimler
My rating: 4 of 5 stars

Um conjunto de 16 contos, onde se parece identificar um temática comum: a diferença e a discriminação que lhe está associada, com a morte quase sempre em cenário de fundo. Os personagens são negros, homossexuais, dissidentes políticos, nerds, emigrantes, gente desadaptada ou traumatizada, que acabam por se ver envolvidos em situações de enorme dor e, por vezes, de violência implacável (a que o autor não nos poupa...).

Destaco: Pontos de Viragem, com a sua viagem de reconciliação pessoal, Ladrões de Memórias, um thriller que nos prende da primeira à última página, A Um Pássaro uma história maravilhosa de fantasia, Aprender a Amar, um belo romance de descoberta do amor e da sexualidade, Sina de Escarumba, um terno conto de amor que nos faz viajar pelos tempos da escravatura nos EUA, A Voz de Raymond, um violentíssimo episódio do apartheid sul-africano

Zimler é um excelente escritor e muitos dos seus contos neste livro acabarão por nos tocar, deixando-nos, por vezes, cheios de repugnância, mas, outras vezes, invadidos por um enorme sentimento de ternura.

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domingo, 5 de outubro de 2014

Cândido, ou o Optimismo by Voltaire

Cândido, ou o OptimismoCândido, ou o Optimismo by Voltaire
My rating: 4 of 5 stars

Cândido é um optimista, mas nada lhe corre bem na vida: apaixona-se pela menina Cunegundes, mas o pai, o Barão de Thunder-ten-tronckh, expulsa-o do seu castelo a pontapés no traseiro porque ele, que não tinha os setenta e um costados da nobreza, ousara beijar a sua filha. A partir daí, as aventuras de Cândido vão de mal a pior, e cada pessoa que encontra tem uma história de vida mais trágica, e cada país que visita sofre de desgraças piores (Cândido chega a Lisboa no dia do grande terramoto de 1755...). Apesar de tudo, e apesar de ter encontrado Martinho, um filósofo cético, Cândido continua a acreditar no seu querido professor Pangloss, que afirma que todo o efeito tem uma razão determinante e que tudo vai pelo melhor neste mundo.

A escrita é em rajada, os episódios rocambolescos e trágico-cómicos sucedem-se. O humor é refinado e certeiro, parodiando filósofos (Pangloss será uma caricatura de Leibniz) e ridicularizando a realeza, governadores ("Don Fernando d'Ibarra y Figueroa y Mascarenes y Lampourdos y Souza", é o governador espanhol de Buenos-Aires), inquisidores, militares, aristocratas, médicos ("à força de medicamentos e de sangrias a doença tornou-se pior") ou religiosos, e por vezes todos de uma assentada: Paquette, uma "airosa dama-de-companhia da nossa augusta Baronesa" estaria infectada com sífilis e teria recebido "este brinde de um Franciscano muito sábio que havia subido à fonte, pois o apanhara com uma velha Condessa, que o tinha recebido de um Capitão de Cavalaria, que o devia a uma Marquesa, que o obtivera de um Pajem, que o recebera de um Jesuíta que, quando era noviço, o ganhara em linha directa de um dos companheiros de Cristóvao Colombo."

O livro de Voltaire teve sucesso explosivo, apesar de ter sido proibido em inúmeros países (entre os quais Portugal). No entanto, Voltaire estava preparado, e tinha montado um esquema de publicação e distribuição brilhante: fez publicar o livro clandestinamente, sob pseudónimo (embora deixando que todos soubessem quem era o verdadeiro autor) e fê-lo distribuir em vários países simultaneamente, com nomes de tipografias falsas, inundando o mercado antes que as autoridades tivessem tempo para atuar, apreendendo-o. O sucesso tem-se mantido, com toda a justiça, até aos nossos dias!





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