segunda-feira, 23 de junho de 2014

Teoria da Fala by Gastão Cruz

Teoria da FalaTeoria da Fala by Gastão Cruz


Reconheço a criatividade da "bocas que escutam", dos "ouvidos que cantam", da "voz que vê"; parece-me que a ausência total de sinais de pontuação, que mistura e confunde, também obriga a reler e a refletir; compreendo a coerência temática, onde as folhas, a terra, as estações, os rios, se cruzam com os órgãos da fala, cruamente e inusitadamente expostos em poesia: os dentes duros, os lábios agrestes e as gengivas, as cordas vocais, os tímpanos, o crânio liso; mas nada disto me entusiasma! Problema meu, eu sei, e por isso não me atrevo a dar "estrelitas"... outra abstenção poética.

Teoria da Fala (o primeiro poema do conjunto que dá o nome ao livro)

Cobrem a boca seca as mesmas folhas
é essa a despedida há corpo
que reduza tal ruído
é de novo o agreste som dos lábios
sob as folhas caídas

Conheces o ruído a boca vive
exactamente dessa despedida
há corpo que reduza tal ruído
é o de novo agreste som da boca
que fala destruída

PS: não, não me enganei a transcrever o poema... simplesmente, o autor não utiliza sinais de pontuação.

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Os Ovos d'Oiro by Armando Silva Carvalho

Os Ovos d'OiroOs Ovos d'Oiro by Armando Silva Carvalho


Um "gás inerte" é aquele que não reage com outros elementos. Este livrinho de poemas é feito, para mim, de "poesia inerte". Não me diz nada, não reage comigo... mas isso não quer dizer que não tenha enorme qualidade, que não desperte emoções fortes, evoque imagens belas ou soe em ritmos melódicos aos ouvidos de outros leitores... pelo que serei eu seguramente, que sou "inerte" e não a poesia de Armando Silva Carvalho! Não sei, e é por isso não me atrevo a dar-lhe estrelitas. É assim, como que uma abstenção.

Transcrevo apenas um poema (João Cabral - VI) a que não fiquei completamente "inerte", porque, ao lê-lo, me lembrei dos sorteios da FIFA.

A língua
oásis branco
pousada
sobre
as coisas.

Pedúnculo
salivando
inteiramente
inverso.

Nariz
sondando a chuva
caindo
contra
as cores.

Por
sobre
o mar
das musas
a colisão dos sonhos.

Um polvo
que procura
as impassíveis
notas.

São os vapores
da pedra
e o seu anel
de cores.

Nas rochas
moles
do gosto
o chapinhar
doente.

A contra-
gosto
os silvos
contra
o coração.

A Passionária
entrando
pelo poço
docemente.

Podemos
deitar fora
o que os cegos
inventam?

Acupunctura
d'alma.

PS: as mesmas equipas jogaram também nas edições anteriores do torneio (João Cabral - I a V) só que calharam em grupos diferentes...

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quinta-feira, 19 de junho de 2014

Donamorta: Pranto Gregoriano by Armando Silva Carvalho

Donamorta: Pranto GregorianoDonamorta: Pranto Gregoriano by Armando Silva Carvalho
My rating: 4 of 5 stars

Um dia da vida de Gregório Pamsa: precisamente o dia que se segue ao funeral da sua mãe, Donamorta. Gregório desperta lentamente, com dificuldade, masturba-se, vai fazer força para a casa de banho, responde ao vizinho que lhe bate à porta e escandaliza 3 Testemunhas de Jeová quando lhes aparece à porta meio nu, vindo do chuveiro. Na subida a seguir à Rotunda, onde o seu Mini tem um furo quando vai a caminho de se encontrar com Musalinda, surge-lhe do nada um belo rapaz, "louro, boticelliano, que traz um brinco numa das orelhas" e que lhe troca o pneu e, em troca, apenas lhe rouba um beijo na boca. O dia segue, cheio de peripécias improváveis, encontros com prostitutas, amigos e amantes, um ex-subsecretário lhe coloca na mão um maço de apontamentos relatando as aventuras de um homossexual pelas zonas de engate do Porto, e termina numa festa na casa apalaçada de Marília, onde, a altas horas, Gregório dança até desmaiar. No quartito para onde o arrastam, o louro despe-o e, depois de despido, "agarra com ambas as mãos o rosto salpicado e dá-lhe um beijo na boca. As manchas desaparecem. Ele desaparece também. (...) Gregório está nu. Está limpo. (...) E com Gregório outro dia começa. Só este livro acaba. Paz à sua alma. Aleluia."

Os primeiros parágrafos, quando Gregório desperta lentamente, fizeram-me recordar a abertura sublime de Um Homem Singular, de Christopher Isherwood. Também aqui o personagem principal luta contra a perda recente de um ente querido, também aqui vagueia pelo dia, em vários encontros e desencontros, com amigos ou desconhecidos.
A linguagem e a imagética são muito ricas, cheias ironia, por vezes de sarcasmo, muita erudição e, simultaneamente, muito nonsense que atinge por vezes as raias do onírico ou do psicadélico. Um livrinho que merece segunda leitura!

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quarta-feira, 11 de junho de 2014

Portugal - A Flor e a Foice by José Rentes de Carvalho

Portugal - A Flor e a FoicePortugal - A Flor e a Foice by José Rentes de Carvalho
My rating: 4 of 5 stars

Um repassar rápido pela História de Portugal, desde Afonso Henriques ao PREC, arrasando os mitos nacionalistas, sobretudo os que nos foram legados pelo regime de Salazar e que, de certo modo, ainda perduram poeticamente na nossa cultura e na nossa ideia de país. Quase nada nem ninguém (exceto, talvez, o Marquês de Pombal...) escapa às setas corajosas e certeiras de Rentes de Carvalho: os podres da monarquia, as vitórias pírricas nas grandes batalhas contra castelhanos e mouros em África, a ganância e a falta de escrúpulos dos Descobrimentos, a balbúrdia da República, a pequenez do salazarismo, a hipocrisia da Igreja Católica, a subjugação a interesses próprios ou de terceiros de Spínola, Otelo, Soares, Cunhal e companhia, do pós-revolução dos cravos.

Esta mediocridade dos políticos e das classes privilegiadas levaria o povo a partir em sucessivas ondas de emigração, primeiro para as Índias, depois para o Brasil e as Américas, e por fim para a Alemanha e a França, para fugir à miséria, à tristeza do país e à ausência de perspetivas de um futuro melhor. "De um ponto de vista social, a emigração portuguesa constitui a manifestação de uma forma de escravidão que subsiste ainda hoje. De um ponto de vista ético, a emigração portuguesa significa a negação constante do direito mais elementar da pessoa: o direito à vida no próprio país. De um ponto de vista político, a emigração portuguesa supõe a renúncia à revolta."

A lucidez da análise parece, no entanto, ofuscar-se à medida que a escrita se torna contemporânea dos factos, e os capítulos dedicados ao pós 25 de abril são, tal como o período que espelham, menos esclarecedores e mais confusos. Nesta fase, o autor aparenta dificuldade de distanciamento, pressente-se que toma partido, que tem opiniões próprias, mas não as apresenta claramente ao leitor, e, neste ponto, não se diferencia muito das críticas que faz aos seus compatriotas.

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domingo, 8 de junho de 2014

Retrato de Rapaz by Mário Cláudio

Retrato de RapazRetrato de Rapaz by Mário Cláudio
My rating: 3 of 5 stars

Giacomo Caprotti, o mafarrico de 10 anos, o ladrãozeco, o mais belo modelo para estátua de Apolo ou Ganimedes, é abandonado pelo pai junto de mestre Leonardo da Vinci, já então homem maduro, como aprendiz, para que o ensine e desbaste. "Aos dez anos, sabendo o que sabiam da vida as putas do Borghetto, foi com alegria que Giacomo ouviu esta ordem mais, carregada do condão de dissipar nele quanto do temor lhe restasse: «Despe-te lá!»" Leonardo deixar-se-ia enlevar pela beleza e pela irrequietude do moço, a quem apelidaria de Salai ("diabrete"), e entre os dois estabelecer-se-ia uma relação de amor que duraria quase até à morte do Artista na corte de Francisco I, rei de França, 25 anos depois.

Escrever sobre pessoas reais, de um passado distante, faz-se usualmente pela perspetiva do historiador, citando factos e tentando articulá-los e interpretá-los, ou do romancista, aderindo mais ou menos à realidade para descrever personagens históricos e enredos. Mário Cláudio constrói a sua novela sobre os factos, sobre os apontamentos do mestre nas folhas dos seus códices, sobre os seus esquiços e pinturas, mas sempre com um certo recato, uma certo estilo de narração modesto e distanciado, que não pretende ter a ousadia de saber das emoções dos personagens, dos seus pensamentos ou intenções. Leonardo, os seus discípulos Salai e Melzi, e os seus diversos patronos, aparecem assim como que envolvidos numa bruma histórica, que por vezes se adensa e não nos permite espreitar, mas que por vezes se aclara um pouco para nos deixar entrever melhor. E talvez um dos instrumentos com que Cláudio nos quis envolver nesse nevoeiro, tenha sido o estilo de escrita que escolheu, de um vocabulário riquíssimo, de uma sintaxe complexa, esparsamente pontuado por discurso direto, em que a familiaridade com as referências culturais, que aparecem sem alarde aqui e ali, é indispensável para a apreciação do texto. No final, fica-nos o prazer da leitura de tão sofisticada escrita e alguma curiosidade não satisfeita sobre o rapaz retratado e o seu amado mestre.

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segunda-feira, 2 de junho de 2014

Virtually Normal by Andrew Sullivan

Virtually NormalVirtually Normal by Andrew Sullivan
My rating: 4 of 5 stars

Andrew Sullivan apresenta ao leitor quatro grupos de argumentos relacionados com a homossexualidade na sociedade americana, expondo uma crítica racional sobre cada um:
Os Proibicionistas (com referência a Tomás de Aquino e à Bíblia) argumentam que o comportamento homossexual é anti-natural, pelo que é prejudicial à sociedade e deve ser proibido.
Os Liberacionistas (inspirados em Michel Foucault) acreditam que "homossexual" é uma etiqueta artificial que deve ser desconstruída, existindo apenas actos homossexuais.
Os Conservadores acreditam que a homossexualidade é um assunto privado e que deve ser admitido desde que não salte para a esfera pública. A política militar americana “Don't ask, don't tell” é um exemplo recente da postura Conservadora.
Os Liberais, segundo Sullivan, seguem na linha do movimento dos direitos civis dos negros norte-americanos, defendendo protecção legal para a minoria homossexual com medidas como ação afirmativa.

Sullivan conclui com uma perspectiva pessoal sobre a política ideal em relação à homossexualidade, uma posição intermédia entre a dos Conservadores e dos Liberais, em que o Estado (a coisa "pública") é neutro em relação à questão de orientação sexual (tal como deve ser em relação a sexo, raça, etc.), não se imiscuindo nos assuntos privados dos cidadãos, ao passo que é deixada liberdade total aos indivíduos (o "privado") para se comportaram em relação à orientação sexual tal como entenderem, desde que respeitem a liberdade alheia.
Segundo este ponto de vista todas as leis discriminando os homossexuais devem ser repelidas, sendo concedidos aos homossexuais todos os direitos e deveres dos heterossexuais, incluindo o direito a servir abertamente o seu país como militares e o direito ao casamento. No entanto, o Estado não deve ir mais além, isto é, legislando de forma a promover mudanças culturais que protejam os homossexuais, pelo que, por exemplo, as leis que agravam penas no caso de crimes de conteúdo homofóbico ou as leis que impõem igualdade de oportunidades em contratos entre privados, devem também ser repelidas.
Sullivan defende, no entanto, que faz parte da liberdade individual que cidadãos critiquem e desincentivem outros cidadãos em relação a comportamentos discriminatórios, isto é, é aceitável que uma empresa não contrate um funcionário por ele ser gay e também é aceitável que um cidadão escreva um artigo criticando e condenando essa empresa pela discriminação contida no seu acto; não é aceitável, no entanto, que o Estado legisle para determinar que as empresas devem procurar um equilíbrio em relação a minorias na sua contratação nem sequer para proibir a discriminação como razão para não contratação.


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