terça-feira, 20 de junho de 2017

Mau Tempo no Canal by Vitorino Nemésio

Mau Tempo no CanalMau Tempo no Canal by Vitorino Nemésio
My rating: 4 of 5 stars

No cenário açoriano da burguesia da Horta e da aristocracia agrícola de São Jorge, da vinha e dos baleeiros do Pico, das touradas da Terceira, dos temporais, dos vulcões, da lava e da peste que grassava no início do século XX, Margarida Dulmo e João Garcia estão apaixonados, mas as suas famílias têm questões antigas por resolver e as suas personalidades são quase opostas: ele é formal, quase tímido, indeciso, ela é extrovertida, social, irreverente. A chegada do tio Robert, filho natural (bastardo) do velho Clark, avô de Margarida, vindo de Londres onde trabalha numa casa financeira, vem desequilibrar a pacatez da vida na Horta.

A escrita de Vitorino Nemésio é riquíssima, com uma sintaxe elaborada, um vocabulário muito extenso (Alô, dicionaristas...), carregado de regionalismos tanto a nível das expressões (muitas delas trazidas do inglês dos baleeiros americanos, como "tempo rofe" para "rough" ou "puláiete" para "pull ahead") como da pronúncia. Muitas cenas são tão bem descritas que nos sentimos a vivê-las, como por exemplo a da tourada da Terceira ou da noite em que os baleeiros dormem numa furna depois de terem sido arrastados para São Jorge por duas baleias que trancaram, e que não resisto a transcrever:
"O ti Amaro da Mirateca, ajeitando discretamente o seu molho de maravalhas contra um canto da furna, acomodara-se e dormia, de nariz e barba ao céu. O silêncio que fechava uma vaga... Depois, do outro lado, um ruído seco, timpânico, cortou o ressonar dos baleeiros. Ouviu-se uma voz acordada do fundo da morrinha: «Quem foi que deu um peido?!» «Sssch... Tómim vergonha, padaço de malcriados! Nã têm respeito à menina!...» Só então Margarida se deu conta de que estava deitada na caverna de uma ilha que parecia deserta, embrulhada no pano de uma vela, no meio de homens a quem o sono e o cansaço tinham devolvido o instinto e o bruto calor da natureza."

Os diversos personagens da família Clark e seus criados, dos Garcia e da família do barão da Urzelina, os baleeiros, do grupo de amigos de João Garcia, os criados, são excelentemente retratados. Neste campo, Nemésio não é clemente para o leitor, trazendo-o para namoros, discussões, conversas, diretamente, como se estivéssemos presentes, sem apresentações.

Neste campo dos personagens do romance, é muito curiosa a personagem do tio Ângelo (Garcia), que desde o princípio é apresentado como homossexual numa reflexão de Margarida ("A recordação do maricas acordava nela a soberba dos Clarks, aquele sentimento maciço, enjoado e um pouco cínico. (...) Representou-se-lhe Ângelo de bigodinho frisado a ferro, faces de menina, o cabelo ruço e melado sob o chapéu de coco, correndo as casas da Horta com o seu pezinho atrasado."). Ângelo é descrito como efeminado, gostando de mexericos, adorando organizar festas e decorar igrejas para festas, muito amigo de Pretextato, um viúvo que não voltou a casar, e, pela noite, rondando os quartéis para engatar soldados. João Garcia, o seu sobrinho, olha para o tio com algum desgosto, embora pareça aceitá-lo. Já o irmão, Januário, não só o protege e emprega, como tira partido dos seus conhecimentos sociais. Ângelo, ele próprio, parece ter vergonha de si mesmo ("Olha. João, teu tio é uma desgraça...").

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