domingo, 13 de março de 2016

Vejo Uma Voz: Uma Viagem ao Mundo dos Surdos by Oliver Sacks

Vejo Uma Voz: Uma Viagem ao Mundo dos Surdos Vejo Uma Voz: Uma Viagem ao Mundo dos Surdos by Oliver Sacks
My rating: 4 of 5 stars

Esta excelente incursão de Oliver Sacks no mundo dos surdos está organizada em 3 partes:
1. a primeira faz uma abordagem histórica sobre os surdos e a surdez, e explica-nos como surgiu a língua gestual americana, como não é uma simples transliteração em gestos das línguas faladas, nem sequer um conjunto de gestos de mímica ou pantomima; antes é uma língua completa, com uma sintaxe, semântica e gramática próprias, fonte de uma cultura específica e riquíssima (teatro, poesia, literatura, dança), que, de certa forma, é inacessível aos ouvintes.
2. a segunda parte trata da surdez do ponto de vista neurológico e explica-nos as diferenças entre surdez pré-linguística (quando se fica surdo antes de aprender a falar porque, por exemplo, se nasceu já surdo) e pós-linguística (quando a surdez tem origem em doença ou acidente ocorrido depois de aquisição da fala), descrevendo os hipotéticos mecanismos do cérebro envolvidos na aprendizagem da linguagem, salientando a enorme plasticidade do cérebro e as maiores capacidades dos surdos no que respeita a acuidade visual e organização do espaço.
3. por fim, Sacks descreve um episódio de revolta de estudantes na Universidade de Gallaudet, uma universidade americana destinada ao ensino dos surdos. Os alunos não aceitaram a eleição de um reitor não-surdo, exigindo que fosse escolhido, pela primeira vez, um surdo, no que constituiu um gesto de afirmação de um movimento identitário e de reivindicação de direitos em tudo semelhante aos movimentos feminista, dos negros ou dos homossexuais.

Em consequência da sua organização, "Vejo Uma Voz" não é um livro estruturado, e a profusão de notas de rodapé pode acabar por perturbar a leitura, mas tais questões são insignificantes quando comparadas com a faculdade que este livro tem de nos obrigar a pensar, de nos despertar para uma realidade na qual nunca tínhamos reparado, mesmo estando ao nosso lado (a prevalência da surdez é de 1 em cada 1000), e, se tínhamos, era com sentimentos de compaixão ou de preconceito.

Sim, porque quem não se recorda de ter, na infância, um familiar ou vizinho "surdo-mudo"? E, na verdade, nem deveria haver qualquer problema com o aparelho vocal do miúdo(a). Seria até, provavelmente, uma criança inteligente, enclausurada numa prisão de comunicação, cheia de vontade de aprender, mas sem dispor das ferramentas para o fazer. Normalmente, pelos seus sons guturais de protesto, por não se desenvolver como as outras crianças, os surdos pré-linguísticos eram classificadas como imbecis e enclausurados em hospícios e reformatórios. Sacks descreve que, quando se ensinava a estas crianças uma língua gestual, elas desabrochavam de repente, curiosas, inteligentes, ansiosas por aprender e por comunicar. Alguns deles tornaram-se excelentes escritores, pintores ou engenheiros. E pensar que, a partir de meados do século XIX até à segunda metade do século XX, as línguas gestuais foram proibidas em muitos países, como a Inglaterra, onde a imposição da conformidade vitoriana penalizava as minorias, como as de surdos, mas também, por exemplo, dos "sodomitas"! Em Portugal, por razões um pouco diferentes, também a Língua Gestual Portuguesa esteve proibida até 1974, pois a ditadura temia que, não sendo compreendida pela polícia política, fosse usada para conspirar contra o regime.

Mas ainda hoje temos por hábito classificar os surdos como "deficientes", como se fosse possível resumir a riqueza e o potencial de um individuo a uma única característica física. Foi com enorme espanto que descobri que é precisamente o contrário: por exemplo, as crianças surdas de nascença conseguem começar a comunicar com os pais em linguagem gestual logo a partir dos 4 meses, para pedir leite, por exemplo, enquanto as crianças não-surdas apenas começam a articular as primeiras palavras por volta do primeiro ano de idade. Os surdos, geralmente, têm uma maior consciência visual e espacial, o que se reflete nas línguas gestuais, que são mais ricas e concisas que as línguas faladas no que se refere a localização e orientação, e na expressão corporal. Neste e noutros campos, surpreendentemente, os "deficientes" somos nós, os "ouvintes".

Dei por mim a pensar: e porque é que não ensinamos a todas as crianças, desde a mais tenra idade, a língua gestual do seu país, fazendo com que, dentro de algumas gerações, esta se tornasse nativa de toda a população, tal como a língua falada? Caçávamos dois coelhos de uma assentada: nós, os "deficientes-ouvintes", poderíamos beneficiar de uma maior sensibilidade visual/espacial e a surdez deixaria de ser impedimento à integração na sociedade de pessoas com enorme potencial.

Costuma dizer-se que "burro velho não aprende línguas", mas eu não quero ficar para trás. Fui à procura na Net e encontrei uma Escola Virtual de Língua Gestual Portuguesa. Já completei o primeiro módulo e fiquei aprovado (com excelente nota!) no respetivo questionário de avaliação. Vá lá, é giro... e é grátis!


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