sábado, 27 de dezembro de 2014

Fados by Miguel Botelho

FadosFados by Miguel Botelho
My rating: 4 of 5 stars

Um conjunto de letras para fados, bem ritmados e "gingados" à moda de Lisboa. Os temas são fadistas, pois claro, a paixão ardente, o amor não correspondido, o coração destroçado, a saudade, mas não só... alguns são reflexões sobre a vida, a normalidade, a verdade e a mentira, a ternura de um abraço, enfim, um verdadeiro "baú" de surpresas! E surpresa é, também, a versatilidade de Miguel Botelho como autor, depois do seu livro de contos Elvis sobre a Baía de Guanabara e Outras Histórias, surge agora, inesperadamente, um livro de poesia. Que mais sairá do seu baú secreto de originais?

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domingo, 21 de dezembro de 2014

Cadernos da Casa Morta by Fyodor Dostoyevsky

Cadernos da Casa MortaCadernos da Casa Morta by Fyodor Dostoyevsky
My rating: 4 of 5 stars

Numa cidade perdida na Sibéria, o autor trava conhecimento com Aleksandr Petróvitch, o percetor das filhas do seu anfitrião. É um homem gasto, atarracado e enigmático, que se furta ansiosamente a todas as perguntas do autor. Mas este descobre, perguntando a um e outro, que Petróvitch vive ali sossegadamente depois de ter cumprido dez anos de trabalhos forçados pelo assassínio da mulher. Anos mais tarde, quando regressa à mesma cidade, o autor descobre que Petróvitch morreu, e que, entre as suas coisas, estão uns cadernos manuscritos com as suas memórias dos tempos de prisão. Depois de os ler, o autor decide publicar alguns capítulos, deixando à consideração dos leitores a avaliação do seu mérito.

Em Cadernos da Casa Morta, Dostoiévski conta-nos pela boca do seu personagem principal, o fidalgo Aleksandr Petróvitch, a sua experiência como prisioneiro político, durante quatro anos, num campo de correção siberiano. E o que tem para nos contar não é agradável: o sofrimento e os castigos, o clima duro da Sibéria, a corrupção entre os guardas, a sujidade e os piolhos. "De qualquer maneira, existem desconfortos perante os quais tudo isso se torna insignificante, tão depressa nos habituamos à imundície e a uma alimentação fraca e porca. O mais mimado fidalgote, o mais sensível senhorito, depois de um dia de trabalho em que sua em bica, comerá o pão negro e uma sopa em que nadam baratas." O que "dói" mesmo é a desumanização a que são sujeitos os presos que os leva a tornarem-se gente dura e quase insensível.

Aníbal Fernandes refere este livro como sendo um dos primeiros na literatura russa onde é mencionada a homossexualidade. Mas, tal como a maior parte das suas reflexões e críticas ao sistema prisional e social russo desta obra, Dostoiévski aborda o tema da homossexualidade muito brevemente e numa linguagem cheia de subentendidos. O personagem é Sirótkin, "uma criatura enigmática em muitos sentidos", muito belo, muito sossegado e meigo, gozado por todos os outros reclusos, e de quem Gáizin, um prisioneiro violento, era "muitas vezes, o amigo especial."
Embora seja apresentada por Dostoiévski como uma obra de ficção, a sua estrutura, uma sequência de capítulos temáticos, sem enredo a entreligá-los, reflete a sua publicação como uma série de artigos em jornal e o facto de se tratarem de memórias algo distantes, embora marcantes. Esta é a primeira tradução direta do russo (que até alterou o título tradicional em português, que era Recordações da Casa dos Mortos ) e, talvez por isso, tem um tom rude e pouco "polido".

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sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Lisboa no Ano 2000 by Melo de Matos

Lisboa no Ano 2000Lisboa no Ano 2000 by Melo de Matos
My rating: 3 of 5 stars

A descrição da Lisboa do ano 2000 tal como imaginada em 1906. O autor afirma, e talvez seja a sua previsão mais acertada, que "quando muito, bastarão trinta anos para que se realize tudo quanto sonharmos escrevendo.". Com efeito, até as previsões mais arrojadas (armazéns automatizados, bolsas para transações financeiras e de mercadorias de cobertura alargada, comboio a vapor chegando a lisboa por tunel vindo do sul,...) estão quase todas ultrapassadas, e nem sinal dos avanços tecnológicos sem os quais quase não conseguíriamos sobreviver hoje, como o telemóvel, computadores, internet, aviões a jato, satélites, etc.!

No ano 2000, na visão do autor, as margens do Tejo estariam pejadas de cais e armazéns e linhas de caminho de ferro e uma espécie de metropolitano suspenso, as sedes das grandes empresas agrícolas, industriais e financeiras são enormes edifícios, ricamente decorados com alegorias a divindades gregas e romanas.

Mas o livro não deixa de ser interessante, mas mais por revelar a mentalidade reinante à época do que por conseguir antecipar o futuro. O autor faz de Lisboa a capital de um Portugal que se transformou numa grande potência mundial, o centro (a par de Londres) do comércio marítimo mundial, uma cidade onde os engenheiros e cientistas inventam máquinas, processos e produtos inovadores que permitem façanhas impressionantes, sem par no mundo inteiro. É pois uma cosmovisão profundamente nacionalista, industrial, científica, apolítica e arreligiosa, que desvaloriza o património (os Jerónimos e a Torre de Belém são "poupados", mas ficam rodeados de fábricas, armazéns e linhas férreas) face ao "progresso", e, sobretudo, pouco humana. Não admira: em 1906, o mundo encontrava-se à beira da I Grande Guerra, Portugal vivia os últimos anos da monarquia e o prestígio da Igreja atingira, talvez, o seu nível mais baixo face a uma ciência que prometia revoluções...

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quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Dois Mundos, A Paz by Pedro Xavier

Dois Mundos, A PazDois Mundos, A Paz by Pedro Xavier
My rating: 4 of 5 stars

Todas as pontas soltas das aventuras que temos seguido ao longo dos últimos quatro volumes da série Dois Mundos se resolvem elegantemente em Dois Mundos, A Paz, o epílogo deste primeiro romance de Pedro Xavier. O protagonista, Pedro, compreende finalmente de que mundo veio e ao que veio, Davis suspira de alívio ao ver o seu amado são e salvo, e os dois constituem a família que sempre ambicionaram e realizam, surpreendentemente, o sonho de terem uma prole numerosa.
Neste livro, o ritmo do enredo continua vertiginoso e a criatividade do autor parece inesgotável. Este talvez seja o volume mais conseguido da série, o que não é de estranhar, pois reflete o natural amadurecimento da escrita do autor.

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segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Dois Hotéis em Lisboa by David Leavitt

Dois Hotéis em LisboaDois Hotéis em Lisboa by David Leavitt
My rating: 4 of 5 stars

Dois casais e a cadelinha Daisy encontram-se na pastelaria Suíça, no Rossio, em Lisboa. Descobrem que estão no Hotel Francfort, mas cada qual no seu Francfort, pois, fruto de desavença familiar, existem dois hotéis com o mesmo nome na cidade. Ambos os casais vêm de França, fugindo das tropas nazis que, em 1940, chegaram a Paris e ameaçam invadir a Península Ibérica. Ambos esperam embarcar dentro de uma semana no paquete Manhattan, enviado pelos americanos para resgatar os seus compatriotas refugiados que se acumulam em Lisboa. É neste ambiente claustrofóbico, de grande incerteza, sem passado nem futuro, neste intervalo em que o tempo se suspende num canto da Europa que ainda vive uma paz podre sob a garra asfixiante de Salazar, que se acende uma paixão intensa, mas fugaz, entre Edward e Peter (o narrador). E é precisamente esta paixão que irá desencadear as tensões que, nessa única semana em Lisboa, levarão a um desenlace trágico que mudará para sempre a vida dos dois casais.

A escrita de David Leavitt é saborosa, e a forma como consegue retratar cada um dos quatro personagens principais, os dois casais, é deslumbrante. Fascinante também (já que o enredo é simples e quase secundário) é a forma como o autor coloca os seus personagens no cenário da cidade de Lisboa, quase como se a cidade fosse um palco, uma sucessão de fotografias de fundo onde a ação decorre naturalmente, ou melhor, perfeitamente.

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terça-feira, 2 de dezembro de 2014

O Segundo Armário: Diário de um Jovem Soropositivo by Gabriel de Souza Abreu

O Segundo Armário: Diário de um Jovem SoropositivoO Segundo Armário: Diário de um Jovem Soropositivo by Gabriel de Souza Abreu
My rating: 4 of 5 stars

Um relato na primeira pessoa, honesto e corajoso, do que é sentir o chão escapar-se debaixo dos pés ao receber a terrível notícia de uma infeção por HIV. Não estando ainda completamente fora do "primeiro armário", o da sua homossexualidade, Gabriel de Souza Abreu é empurrado à força para um "segundo armário", o de ter de esconder a sua seropositividade: da família, para não magoar a mãe, dos amigos e namorados, para poder continuar a amar e a ter sexo, e dos colegas, para evitar ser discriminado no emprego. Mas Gabriel consegue ir superando todas as barreiras, uma a uma, tanto as que lhe colocam como as que ele coloca a si mesmo, e acaba por descobrir uma vocação, a de ajudar e aconselhar os jovens atingidos pelo mesmo problema.

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quarta-feira, 26 de novembro de 2014

O íntimo ofício by Z.A. Feitosa

O íntimo ofícioO íntimo ofício by Z.A. Feitosa
My rating: 3 of 5 stars

Bita, um garoto de Alvinópolis, em Minas Gerais, filho dos donos do Recanto do Chofer, uma estação de serviço/restaurante/hotel, navega pelas águas traiçoeiras da descoberta da sua sexualidade com o irmão, os amigos, um vaqueiro, um motorista, uma quenga e um par de namoradas, com as quais procura esconder-se das críticas e assédio dos habitantes de uma pequena cidade do interior brasileiro das décadas de 1960-70.

A escrita é muito cândida e simples, mas muito realista, quase nos fazendo ver o mundo de Bita pelos seus olhos, deixando que nos identifiquemos com ele e com as suas paixões e medos, e fazendo despertar em nós uma grande ternura pelas desventuras do adolescente. E se são realmente memórias, como a menção da capa afirma, então são também textos que revelam a grande coragem de quem os escreveu!

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segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Comrade Loves of the Samurai by Saikaku Ihara

Comrade Loves of the SamuraiComrade Loves of the Samurai by Saikaku Ihara
My rating: 4 of 5 stars

Ihara Saikaku (1642-1693), foi um romancista e poeta japonês, considerado um dos pais do conto e do romance no Japão. Com os seus livros da série "Mundo Flutuante", revolucionou a prosa japonesa, abordando temas populares e quotidianos, por vezes licenciosos e proibidos, numa linguagem simples e coloquial. Escrevia para vender e ganhar dinheiro, mais que para permitir a reflexão do leitor ou para o informar. As suas obras tiveram enorme sucesso comercial durante a sua vida, mas acabaram por ser esquecidas até ao final do século XIX, quando finalmente recomeçaram a despertar o interesse dos estudiosos. No entanto, devido ao seu conteúdo erótico, muitos contos e novelas continuaram censurados pelos governos militares que dominaram o Japão no início do século XX, e só após a II Guerra Mundial foram publicadas as suas Obras Completas. Yukio Mishima declarou uma vez que o seu livro, Confissões de uma Máscara, era a primeira obra importante a abordar o tema da homossexualidade no Japão depois de The Great Mirror of Male Love, de Saikaku.

Comrade Loves of the Samurai é uma seleção de contos de Saikaku que aborda o tema do amor entre samurais, traduzidos para o inglês por E. Powys Mathers, em 1928, a partir da tradução francesa por Ken Sato. São pequenas histórias ternas e cândidas de paixões devastadoras entre samurais, que terminam frequentemente em haraquiri, de acordo com o código de honra dos tradicionais guerreiros japoneses. O amor retratado tem, surpreendentemente, dada a distância geográfica e temporal entre as duas culturas, muitas semelhanças com o amor grego, surgindo frequentemente a figura tutelar do homem mais velho, que ama, aconselha e educa o jovem por cuja beleza se apaixona. Surpreendente é, também, a descoberta de que por detrás da frieza marcial e assassina que nos habituámos a associar aos míticos samurais japoneses existiam, na verdade, relações homossexuais de amor e ternura inesperadas.

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Ao amigo que não me salvou a vida by Hervé Guibert

Ao amigo que não me salvou a vidaAo amigo que não me salvou a vida by Hervé Guibert
My rating: 4 of 5 stars

Hervé Guibert, jornalista e escritor francês, descobre-se infetado pelo vírus da SIDA na década de 1980, quando a doença mal havia sido identificada e era inapelavelmente mortal em poucos anos. Procuravam-se, desesperadamente, remédios e vacinas para a curar ou prevenir. Circulavam todo o tipo de rumores sobre infetados, novos medicamentos, formas de infeção, conspirações sobre as origens. O namorado de Guibert, e muitos dos seus amigos franceses e americanos, fazem o teste e descobrem que também estão infetados. O seu amigo e antigo amante Muzil (o famoso filósofo Michel Foucault) acaba por morrer precocemente, vítima do HIV, no meio de grande segredo. Hervé Guibert debate-se com pensamentos contraditórios, abençoa a doença, "uma genial invenção moderna", que lhe põe a morte no horizonte, obrigando-o a valorizar a vida. Mas também a amaldiçoa, e pensa em desistir ou mesmo suicidar-se. E escreve como sente, desordenadamente, sem tempo para explicar o que pensa, misturando tempos e lugares, mas mantendo uma lucidez e uma originalidade de pensamentos inesperados.
Guibert morreu em 1991, vítima de SIDA, aos 36 anos de idade. As últimas palavras do seu livro são: "A voragem do meu livro fecha-se sobre mim. Estou na merda. Até onde queres tu ver-me afundar? Enforca-te Bill! Os meus músculos derreteram. Reencontrei enfim as minhas pernas e os meus braços de criança."

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domingo, 2 de novembro de 2014

Defesa e Condenação da Manice by Ana Hatherly

Defesa e Condenação da ManiceDefesa e Condenação da Manice by Ana Hatherly
My rating: 4 of 5 stars

Este pequeno livro (quase um folheto) inclui dois textos do início século XVIII sobre a manice (lesbianismo) recolhidos por Ana Hatherly e uma introdução esclarecedora em que a investigadora os apresenta e analisa.
O primeiro texto, de autoria do Visconde de Asseca (provavelmente o terceiro visconde, Diogo Correia de Sá, intitula-se "Defesa da manice em abono das senhoras mulheres contra a murmuração dos homens" . É um texto elegante, invocando a razão e os clássicos como fundamento para a sua defesa. "É a semelhança o primeiro incentivo do amor. Forçosamente, então, há de haver maior amor onde houver maior semelhança."
O segundo texto, de autoria de Frei João Manuel (talvez um monge de Alcobaça), foi escrito como resposta ao primeiro e tem o título "Invectiva da formosura contra o indecoroso abuso da manice em resposta à defesa feminina feita para manifesta ainda que indigna proteção do mesmo delírio" . Tal como o próprio título, este texto é extremamente jocoso e muito divertido ("é pois uma mana, uma mona enfeitada"), apesar de utilizar os mesmos argumentos do primeiro, a razão e os clássicos. "Como pode uma formosura render-se a outra (...) A maior oposição que há é a das formosuras entre si: fazem-se a guerra com exércitos de perfeições e, julgando-se igualmente poderosas, se consideram incontrastáveis."
Provavelmente, dois dos primeiros ensaios em língua portuguesa sobre a homossexualidade.

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Um dia as canas tocarão nos céus? by João Firmino

Um dia as canas tocarão nos céus?Um dia as canas tocarão nos céus? by João Firmino
My rating: 2 of 5 stars

António Fernando Cascais, no prefácio (muito bom), sugere a forte componente biográfica desta obra de João Firmino. O próprio autor, não a disfarça, ao denominar o personagem principal de Firmo, e a sua tia Glória, por exemplo, de tia Gi. Estamos, portanto, perante a história de uma vida, contada pelo próprio, que acompanhamos desde os 3 anos, quando o protagonista vive com os pais em Lisboa, até que, já com mais de quarenta anos, regressa a Lisboa de uma viagem pela Europa com o filho, para a qual partiu de coração destroçado pelo fim de uma relação com o seu namorado, Seth. Saber que há um fundo de verdade neste romance, aumenta muito o interesse da leitura, mas a estrutura narrativa e a qualidade da escrita são algo frágeis. De elogiar, sem dúvida, a coragem do autor, ao discutir a sua sexualidade, as suas fragilidades emocionais e as suas dúvidas, que todos têm, mas das quais poucos falam tão abertamente.

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domingo, 26 de outubro de 2014

Poemas e Prosas by C.P. Cavafy

Poemas e ProsasPoemas e Prosas by C.P. Cavafy
My rating: 3 of 5 stars

Joaquim Manuel Magalhães em colaboração com o grego Nikos Pratsinis, puseram mão à obra da tradução de alguma poesia e prosa de Cavafy (ou Kavafis, como os autores preferem) com o objetivo de ser o mais fiel possível ao original. Mantiveram as rimas finais e as interiores possíveis, mantiveram a sintaxe dos versos, utilizaram as palavras em português que mais se aproximavam ao significado original do grego falado em Alexandria à época e mantiveram até a pontuação original, mesmo quando parecia não fazer sentido. Tudo para evitar "recorrer a uma tradução interpretativa, mantendo as mesmas flexibilidades de sentido do original."

Apesar de compreender a intenção, não deixo de ficar incomodado com os resultados, que são, por vezes, desconcertantes. Creio que, como alguém dizia, não se faz tradução de poesia: reescreve-se poesia, e tanto é autor o que a escreveu na língua original como o que a "traduziu" para outra língua. É por isso que, apesar de respeitar o esforço dos autores e de compreender que esta tradução fiel despertará seguramente o interesse de muitos leitores, me emocionam mais as versões de Jorge de Sena, em 90 e Mais Quatro Poemas.
Transcrevo a seguir, como exemplo, as duas traduções de um dos mais belos poemas de Cavafy, em que ele se refere a um Marco António derrotado, em vésperas da ocupação de Alexandria pelo seu rival Octávio e do seu próprio suicídio, ao lado da sua amada Cleópatra:

O DEUS ABANDONA ANTÓNIO (versão J.M.Magalhães e N. Pratsinis)
Quando de repente, à hora da meia-noite, se ouvir
passar uma turba invisível
com músicas requintadas, com vozes -
a tua sorte que já cede, as tuas obras
que falharam, os planos da tua vida
que deram em equívoco, não os deplores.
Como preparado há muito, como corajoso,
despede-te dela, da Alexandria que se vai embora.
Sobretudo não te enganes, não digas que foi
um sonho, que foram defraudados os teus ouvidos;
tais esperanças vãs não te rebaixes a aceitar.
Como preparado há muito, como corajoso,
como convém a ti que mereceste tal cidade,
aproxima-te resoluto da janela,
e ouve com emoção, mas não
com as súplicas e as queixas dos covardes,
qual último deleite, os sons,
os instrumentos requintados da turba oculta,
e despede-te dela, da Alexandria que perdes.


O DEUS ABANDONA MARCO ANTÓNIO (versão de J. Sena)
Quando subitamente se ouve à meia-noite
um cortejo que invisível passa
com sublimes músicas e cânticos -
a tua fortuna que desiste, as tuas obras
que falharam, os planos de uma vida inteira
tornados nada -, não te vale chorar.
Como aquele de há muito preparado, corajosamente
diz-lhe adeus, à Alexandria que de ti se afasta.
Acima de tudo não te iludas, nunca digas que foi
apenas sonho, um engano, quanto ouviste:
não te agarres a tão vãs esperanças.
Como aquele de há muito preparado, corajosamente,
e como é próprio de quem, como tu, era digno de uma tal cidade,
aproxima-te firme da janela,
e escuta emocionado, mas não
com lamentos e súplicas cobardes,
escuta, derradeira alegria tua, os sons que passam,
os sublimes instrumentos do cortejo místico,
e diz adeus, adeus à Alexandria que perdeste.



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sábado, 25 de outubro de 2014

Literatura Homoerótica Latina: critérios para uma definição - criterios para una definición by Carlos de Miguel Mora

Literatura Homoerótica Latina: critérios para uma definição - criterios para una definición (edição bilingue)Literatura Homoerótica Latina: critérios para uma definição - criterios para una definición by Carlos de Miguel Mora


Carlos Miguel de Mora sugere os critérios pelos quais se poderá julgar o que seria uma sexualidade socialmente aceitável na Roma Antiga, permitindo, assim, compreender o que seria o homoerotismo: a "transgressão" à norma, do ponto de vista do pensamento romano. Os resultados são surpreendentes! Alguns tabus sexuais modernos seriam pura e simplesmente inexistentes ou incompreensíveis no mundo latino; outros, como aquilo a que hoje chamamos “sexo homossexual”, seria considerado perfeitamente normal e socialmente aceitável em certas situações da antiguidade clássica, como neste exemplo que o autor refere: "Com efeito, (...) os escravos não são mais que objetos, e, tendo em conta o que custavam, que o dono não os penetrasse era para os romanos tão absurdo como seria para nós comprar um Mercedes e deixá-lo na garagem sem o utilizar."

A leitura deste esclarecedor texto obriga-nos a refletir sobre os nossos preconceitos relacionados com a sexualidade: muitos dos aspetos da sexualidade "normal" da Roma Antiga seriam "imorais" nos nossos dias. Muita da sexualidade “comum” hoje seria considerada crime no mundo latino. Assim sendo, o que muitos hoje proíbem ou condenam por contrariar o que é "natural" ou determinado pela Natureza, e logo imutável, parece afinal não ser mais que uma característica cultural da nossa sociedade contemporânea, e muitos dos textos literários catalogados atualmente como “literatura homoerótica latina” não se enquadram, de facto, nesta definição!

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quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Confundir a Cidade com o Mar by Richard Zimler

Confundir a Cidade com o MarConfundir a Cidade com o Mar by Richard Zimler
My rating: 4 of 5 stars

Um conjunto de 16 contos, onde se parece identificar um temática comum: a diferença e a discriminação que lhe está associada, com a morte quase sempre em cenário de fundo. Os personagens são negros, homossexuais, dissidentes políticos, nerds, emigrantes, gente desadaptada ou traumatizada, que acabam por se ver envolvidos em situações de enorme dor e, por vezes, de violência implacável (a que o autor não nos poupa...).

Destaco: Pontos de Viragem, com a sua viagem de reconciliação pessoal, Ladrões de Memórias, um thriller que nos prende da primeira à última página, A Um Pássaro uma história maravilhosa de fantasia, Aprender a Amar, um belo romance de descoberta do amor e da sexualidade, Sina de Escarumba, um terno conto de amor que nos faz viajar pelos tempos da escravatura nos EUA, A Voz de Raymond, um violentíssimo episódio do apartheid sul-africano

Zimler é um excelente escritor e muitos dos seus contos neste livro acabarão por nos tocar, deixando-nos, por vezes, cheios de repugnância, mas, outras vezes, invadidos por um enorme sentimento de ternura.

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domingo, 5 de outubro de 2014

Cândido, ou o Optimismo by Voltaire

Cândido, ou o OptimismoCândido, ou o Optimismo by Voltaire
My rating: 4 of 5 stars

Cândido é um optimista, mas nada lhe corre bem na vida: apaixona-se pela menina Cunegundes, mas o pai, o Barão de Thunder-ten-tronckh, expulsa-o do seu castelo a pontapés no traseiro porque ele, que não tinha os setenta e um costados da nobreza, ousara beijar a sua filha. A partir daí, as aventuras de Cândido vão de mal a pior, e cada pessoa que encontra tem uma história de vida mais trágica, e cada país que visita sofre de desgraças piores (Cândido chega a Lisboa no dia do grande terramoto de 1755...). Apesar de tudo, e apesar de ter encontrado Martinho, um filósofo cético, Cândido continua a acreditar no seu querido professor Pangloss, que afirma que todo o efeito tem uma razão determinante e que tudo vai pelo melhor neste mundo.

A escrita é em rajada, os episódios rocambolescos e trágico-cómicos sucedem-se. O humor é refinado e certeiro, parodiando filósofos (Pangloss será uma caricatura de Leibniz) e ridicularizando a realeza, governadores ("Don Fernando d'Ibarra y Figueroa y Mascarenes y Lampourdos y Souza", é o governador espanhol de Buenos-Aires), inquisidores, militares, aristocratas, médicos ("à força de medicamentos e de sangrias a doença tornou-se pior") ou religiosos, e por vezes todos de uma assentada: Paquette, uma "airosa dama-de-companhia da nossa augusta Baronesa" estaria infectada com sífilis e teria recebido "este brinde de um Franciscano muito sábio que havia subido à fonte, pois o apanhara com uma velha Condessa, que o tinha recebido de um Capitão de Cavalaria, que o devia a uma Marquesa, que o obtivera de um Pajem, que o recebera de um Jesuíta que, quando era noviço, o ganhara em linha directa de um dos companheiros de Cristóvao Colombo."

O livro de Voltaire teve sucesso explosivo, apesar de ter sido proibido em inúmeros países (entre os quais Portugal). No entanto, Voltaire estava preparado, e tinha montado um esquema de publicação e distribuição brilhante: fez publicar o livro clandestinamente, sob pseudónimo (embora deixando que todos soubessem quem era o verdadeiro autor) e fê-lo distribuir em vários países simultaneamente, com nomes de tipografias falsas, inundando o mercado antes que as autoridades tivessem tempo para atuar, apreendendo-o. O sucesso tem-se mantido, com toda a justiça, até aos nossos dias!





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domingo, 21 de setembro de 2014

Teleny by Oscar Wilde

TelenyTeleny by Oscar Wilde
My rating: 4 of 5 stars

Camille de Grieux apaixona-se por René Teleny, um pianista com quem estabelece uma relação quase metafísica quando o ouve pela primeira vez num concerto de beneficência. Tenta resistir à paixão que o assola, mas não consegue, e cai nos braços do pianista, com o qual tem sessões prolongadas de sexo tórrido. Mas não sente vergonha ou aversão por se ter apaixonado por outro homem: "Sentia-me alegre, contente, feliz. Teleny era meu amante e eu dele. Longe de sentir vergonha pelo meu crime, apetecia-me anunciá-lo ao mundo inteiro. Pela primeira vez na vida, compreendia a alegria dos apaixonados que entrelaçam as suas iniciais. Desejava gravar o nome dele no tronco de uma árvore, para que as aves, ao vê-lo, o cantassem de manhã à noite e a brisa o murmurasse às folhas que povoam a floresta. Queria escrevê-lo na areia da praia, para que o oceano conhecesse o meu amor e o sussurrasse eternamente.". Mas, com a paixão vem a inveja e o ciúme, de Briancourt e outros amigos de Teleny, mas também da senhora de Grieux, a mãe de Camille, que não permanecerá impassível à situação em que suspeita o filho...

Um romance pornográfico? uma romance com cenas de pornografia? De uma forma ou de outra, um romance primeiro que tudo, sem dúvida, sendo a pornografia apenas um elemento secundário. Mas são cenas de pornografia, para todos os efeitos, hetero e homossexual, embora escritas com grande elegância e com um exagero quase barroco. As primeiras edições, no final do século XIX, foram muito pequenas e de circulação restrita por isso mesmo: a homossexualidade ainda era crime punido com prisão em muitos países! A autoria da obra, por outro lado, nunca foi completamente esclarecida, havendo fortes suspeitas que o manuscrito tenha saído da pena de Oscar Wilde. O enredo prende desde as primeiras páginas, até porque o esquema narrativo encontrado pelo autor (Camille conta as suas memórias em discurso directo), faz pressentir no tom melancólico e doloroso da voz do narrador que alguma tragédia está para acontecer. Algumas passagens são realistas, vívidas e sensoriais (a cena noturna em que Camille deambula por uma zona de engate homossexual), outras mais românticas e místicas (há quem diga que mais de um autor esteve envolvido na escrita), mas o conjunto é muito bom e o final emocionante.

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terça-feira, 16 de setembro de 2014

O Sr. Ganimedes by Alfredo Gallis

O Sr. GanimedesO Sr. Ganimedes by Alfredo Gallis
My rating: 4 of 5 stars

O Sr. Ganimedes é um dos primeiros romances em língua portuguesa que fala abertamente de homossexualidade (embora em tom condenatório...), tomando-a para tema central do enredo, na senda de "Sáficas", do mesmo autor, de "O Barão de Lavos", de Abel Botelho, e de "O Bom Crioulo", de Adolfo Caminha. Segundo Robert Howes, esta "coragem" dos autores de língua portuguesa parece ser pioneira na Europa. Com efeito, nesta época, em finais do séc. XIX, princípios do XX, o tema ainda era tão escandaloso que nenhum autor ousava utilizá-lo nos seus romances. Teleny, de Wilde, foi publicado anonimamente, Maurice, de Forster, só foi publicado após a morte do autor, etc...
Gallis pinta um quadro curioso dos costumes e da linguagem da época (o baile de máscaras no São Carlos, o Lazareto na margem sul, para quarentena dos que chegavam no paquete do Brasil, etc.), numa escrita muito floreada e adjetivada ("a perna magnífica, roliça, musculosa, bem torneada", "as curvas opulentas dos quadris e a elevação venusina dos seios", "os pequeninos pés admiravelmente talhados", etc.).
Curiosamente, apesar do tom moralista, de aviso às damas inocentes sobre os perigos de casar com esses imorais efebos, o romance acaba com a dama inocente a cair em pecado, e o horrível efeminado nos braços do seu amado!
Um livro a ler, até pela sua importância histórica!


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sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Os sinais do medo by Ana Zanatti

Os sinais do medoOs sinais do medo by Ana Zanatti
My rating: 3 of 5 stars

Rosarinho deixa o marido, Vasco, de quem já não se sentia próxima e cai numa depressão de quem nem a lembrança da falecida tia Flávia a ajuda a sair. Paulo, oprimido pelos pais tiranos, abre-se finalmente com a sua amiga Rosarinho, contando-lhe que está apaixonado por outro homem, Luís, acabado de se divorciar de Teresa, que o havia descoberto com outro homem. Luís, pai de Mariana, é, por sua vez, amigo de Rita, uma mulher decidida, que tenta superar o esfriamento súbito da sua relação com Cristina, apoiando-se na memória da falecida tia Maria do Carmo, que adorava. Quando Paulo e Luís têm um acidente no Alentejo, o círculo completar-se-á mas os vários desfechos nem sempre serão positivos...

Aviso prévio: "as minhas leitoras" que me perdoem, mas aprecio mais a escrita que, ao invés de descrever "sentimentos", descreve as "ações" que me permitem compreender por mim próprio o que os personagens sentem, vestir-lhes a pele. Reconheço que esta preferência é pessoal e, talvez, muito "masculina". Apesar de ter tentado, não sou capaz de passar das primeiras páginas de autores de grande qualidade como Ana Cristina Silva ou Marion Zimmer Bradley (por isso lhe chamo estilo "avalon").

O mesmo não se passou com Os Sinais do Medo, de Ana Zanatti, que li até ao fim mas, tenho de confessar, meio desnorteado num oceano de descrições de sentimentos e emoções, relações desfeitas e reatadas, depressões e angústias e até ligações espirituais com o além. Por detrás deste mar de palavras, estão ideias muito interessantes, casos de vida muito realistas, desafios sociais muito importantes, que, tenho a certeza, encontraram (e encontrarão) justos apreciadores, contribuindo para a reflexão e desenvolvimento humano de muitos leitores e leitoras.

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quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Máscaras de Salazar: Narrativa by Fernando Dacosta

Mascaras de Salazar: NarrativaMascaras de Salazar: Narrativa by Fernando Dacosta
My rating: 2 of 5 stars

Não é biografia, nem ensaio, nem história; parecem memórias, mas o subtítulo indica "narrativa", por vezes parecem artigos soltos de jornal, mas não se limita a factos, apresenta muitos rumores ("Amigos dizem-no pedófilo, secreto de aventuras, amancebado com a governanta Maria"), é muito opinativo, e interpreta, sem fundamentar, como se o autor fosse omnisciente. De capítulo para capítulo, os temas e os tempos variam, neste Salazar acabou de morrer, dois capítulos à frente, ainda está a ser operado. Aqui fala-se de turismo sexual nos anos 60 (as festas gay de Cliff Richard, a intimidade do exilado Rei Humberto de Itália com os pescadores e militares de Cascais, a Madeira, "uma flor carnívora internacional"), duas ou três páginas adiante descreve-se o acidente que vitimou Duarte Pacheco 20 anos antes e a seguir saltamos para os exilados e os clandestinos de esquerda. Enfim, baralhou-me... e também me dececionou, porque acredito que a temática Salazar/Estado Novo e a riqueza da vida e das memórias de Fernando Dacosta merecia outro tratamento literário.

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segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Diabruras de um gay assumido by Alexa Wolf

Diabruras de um gay assumidoDiabruras de um gay assumido by Alexa Wolf
My rating: 1 of 5 stars

As aventuras mirabolantes de um rapaz gay, enfermeiro, que vive com o seu namorado, mas que se apaixona sucessivamente e desastradamente por um médico, um bruxo, um gigante de três "pernas", um preto, um polícia e outros.

A nota prévia da autora fazia prever o pior, ao descrever os comportamentos "pouco ortodoxos e exagerados" dos homossexuais: "são um conjunto de gestos pouco normais, quer num homem quer numa mulher comum, modos de expressão, fora de todo o contexto usual e aceitável face à normalidade, não falando nos gritinhos histéricos e maneiras de vestir de cada um deles".

Mas o (pequeno) texto burlesco não é particularmente homofóbico, é sim mal escrito e de mau gosto! Apenas para dar um exemplo, eis as memórias da "primeira vez" do protagonista: "fora ele quem me desflorara o meu botão de cu de rosa! (...) ele tentava encontrar a entrada do túnel onde pensou que conseguia enfiar o Rossio na rua da Betesga. (...) No mesmo momento em que a minha pobre mãe entrava em casa, ele entrou como um shuttle espacial rompendo os céus. (...) A gritaria foi tanta que a mamã chamou o INEM. (...) quando a polícia arrombou a porta do meu quarto e o INEM e os seus paramédicos entraram de rompante no quarto (...) alguns empurrados por outros, caem de encontro a mim, caindo um deles (coitado) com o respectivo nariz bem no meu rego e eu, ao bater com a barriga em chapa em cima da cama, não consegui conter o ar e o pobre ainda respirou o aroma do suspiro do meu traseiro apaixonado."
Mais palavras para quê?

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Lugar de Massacre by José Martins Garcia

Lugar de MassacreLugar de Massacre by José Martins Garcia
My rating: 3 of 5 stars

O conde de Avince, descendente de uma nobre linhagem guerreira, falha as carreiras das Armas e das Leis e é, por isso, mobilizado para guerra colonial, mas consegue ficar no quartel-general de Bissau, nos Serviços de Conjugação. O novo comandante dos Serviços, a Porca, "rechonchudo e meigo, arcanjo e hermafrodita, tanto mirava cu como braguilha", deixa o conde cheio de ciúmes ao nomear Fernando Laito, um homossexual, para seu ordenança, mas Avince rapidamente o consegue destronar. Entra em cena Pierre Avince, um tipo culto, revoltado com a guerra, que se refugia numa bebedeira permanente. Na sequência de um inquérito sobre rumores escandalosos referindo o alastramento da homossexualidade entre as forças estacionadas em Bissau, o capitão Porca tira partido da coincidência dos nomes, e envia Pierre Avince para aquartelamentos isolados e distantes, ficando com o conde Avince para seu aconchego. As experiências de Pierre Avince, na sua comissão pelas zonas de guerra, marcá-lo-ão para sempre...

Um livro escrito quase como se fosse um sonho (ou, para ser mais correto, um pesadelo), como um fluxo de pensamento de um louco, variando de narrador, viajando no espaço ou no tempo em parágrafos consecutivos, sem que se consiga distinguir bem o que são memórias e o que é ficção, muito na linha da escrita da geração beat (Burroughs, Kerouac, et al). Ao "despertar", no final da leitura, ficam as imagens fortes dos horrores, injustiças e incoerências da guerra.

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terça-feira, 26 de agosto de 2014

Forma Breve 7: Homografias. Literatura e Homoerotismo

Forma Breve 7: Homografias. Literatura e HomoerotismoForma Breve 7: Homografias. Literatura e Homoerotismo by António Manuel Ferreira
My rating: 4 of 5 stars

Um conjunto de artigos académicos apresentados no congresso homónimo. A qualidade média dos artigos é muito boa, embora o desvio padrão seja elevado...

Muito interessantes e esclarecedores os artigos de:
- Carlos de Miguel Mora, que explica o que seria considerado homoerotismo no mundo romano, segundo os critérios da época,
- Anna M. Klobucka, que descobre um "Caderno Proibido" de poesia no espólio de Botto e o compara a Pessoa,
- Teresa Bagão, que desenterra o romance Signo de Toiro, de Celestino Gomes,
- João de Mancelos, que fala de Withman e Eugénio de Andrade, do que os une e de como um influenciou o outro,
- Virgínia de Jesus, que dá a conhecer a poesia de Miguel Rovisco, em Poemas do Prazer Masculino,
- Paulo Alexandre Pereira, que analisa a homossexualidade na literatura da guerra colonial portuguesa,
- Isabel Cristina Rodrigues, que defende a obra Rui Nunes, apesar de afirmar que "não é de leitura fácil",
- António Manuel Ferreira, que faz uma introdução ao conto de temática homossexual do Brasil a partir da antologia "Entre Nós", e
- Ana Margarida Ramos, pesquisando a literatura infantil.

Em relação a alguns dos outros artigos deixo o citação que Martim Gouveia de Sousa faz no seu: "Lembro me agora que a introdução já vai longa e fere mesmo a protocolar admonição de António Sérgio, inserta na 4ª das suas Cartas de Problemática, datada de Novembro de 1952, que transcrevo muito parcelarmente: «Sempre que um típico intelectual lusitano tem por mira instruir-nos sobre determinado assunto embrenha-nos na selva de uma introdução genérica, historico-genetico-filosofico-preparatoria, cheia de cipoais onde se nos enreda o espírito, e onde nunca se avista a estrada recta e livre. Depois, quando nos achamos já cerca da orla da floresta, principiando-se a enxergar o bom caminho e o objectivo – pronto!, acaba-se o fôlego do nosso autor e a nós próprios exactamente no instante em que se ia abordar o tema.»”

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segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Os Navios Negreiros Não Sobem o Cuando by Domingos Lobo

Os Navios Negreiros Não Sobem o CuandoOs Navios Negreiros Não Sobem o Cuando by Domingos Lobo
My rating: 3 of 5 stars

Uma companhia militar portuguesa encontra-se sediada em Neriquinha, um quartel nos confins do inóspito leste angolano, durante a guerra colonial, onde não se passa nada e as tropas dão em doidas, a tal ponto que, ao chegar de umas férias em Luanda com o soldado Belezas, onde descobre a "cena" de prostituição gay da capital, o narrador encontra os seus camaradas a oxigenar o cabelo e a travestir-se!

Uma espécie de livro de memórias, onde as memórias não se distinguem bem da ficção, que não é bem um romance, mas também não é um livro de crónicas, onde a prosa por vezes parece mais poesia, mas que tem, ainda assim, alguns episódios divertidos (o Fernandinho deixado nu pela a sua Adelina) e surpreendentes (a fogosa Patroa da pensão do Mussende).

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sábado, 23 de agosto de 2014

Nó Cego by Carlos Vale Ferraz

Nó CegoNó Cego by Carlos Vale Ferraz
My rating: 4 of 5 stars

Em Mueda, Moçambique, durante a guerra colonial, uma companhia de comandos rude, indisciplinada, mortífera, vê-se envolvida num emaranhado de operações mal preparadas pela burocracia militar instalada em Nampula, bem longe do perigo. Cada soldado, cada sargento, cada oficial da companhia, tem a sua história de vida. O cabo Cabral é "chico" porque precisa alimentar a família, o alferes Lino fugiu do seminário, o Brandão veio provar que um homossexual também é homem, o Lencastre fartou-se de ser menino-bem,... todos voluntários, todos comandos, todos na mata para matar o passado, mais que o inimigo. E é um capitão muito especial que une este grupo improvável, uma figura paterna forte que muitos deles nunca conheceram.

O contraste entre a tropa portuguesa e os guerrilheiros da Frelimo não poderia ser mais marcante: onde os primeiros se mostram amadores, medíocres, sem estratégia, ou pior, carreiristas e interesseiros, os segundos são apresentados como sagazes, matreiros, ideologicamente muito seguros. Mas as coisas não vão acabar bem... e a companhia acaba por se esboroar tal como acabaria por se desmoronar o "império colonial" português no decorrer de uma guerra inútil.

Um romance muito realista, muito bem conseguido, de quem viveu no terreno este tipo de experiências e sabe o que se sente e se sofre.

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terça-feira, 12 de agosto de 2014

O essencial sobre Eugénio de Andrade by Luís Miguel Nava

O essencial sobre Eugénio de AndradeO essencial sobre Eugénio de Andrade by Luís Miguel Nava
My rating: 4 of 5 stars

Três pequenos textos sobre Eugénio de Andrade.

No primeiro, "Esboço biográfico", resumem-se alguns factos da vida do autor, apontam-se influências (Pessanha, Lorca) e convivências (Torga, Pessoa, Botto, Cesariny e outros), e anota-se uma bibliografia.

O segundo e o terceiro, intitulados "O Erotismo e a Natureza" e "A Escrita", apresentam o erotismo como a grande pulsão da poesia do autor, metamorfoseada no corpo (as mãos, a boca, os sentidos,...), em símbolos (os barcos, os rios, as fontes,...) e na natureza (os frutos, os pássaros, a noite, os cavalos,...).

« Fonte pura..., assim queria
que fosse meu coração:
fluir na noite e no dia
sem se desprender do chão. »

« Seguir ainda esses sinais,
o sulco de um riso breve,
o sol escuro dos abrunhos bravos
ou do sexo levantado,
o frémito miúdo dos dentes na pele,
e os cavalos os cavalos os cavalos. »

Com o avançar da idade (Nava escreveu estes textos em 1986-7, ainda em vida de Eugénio de Andrade) e o desvanecimento do estímulo amoroso («talvez tenha já começado a envelhecer e o desejo, esse cão, ladra-me agora menos à porta»), seriam o amor às palavras e as memórias da juventude a fonte de onde continuaria a jorrar a poesia do autor.

« Agora são elas que têm o teu rosto,
as palavras; e não só o rosto:
o sexo e a trémula alegria
que foi sempre senti-lo desperto. »

« Julguei que não voltaria a falar
desse verão onde o sol se escondia
entre a nudez
dos rapazes e a água feliz. »

Nava é discreto em relação à sexualidade do autor, mas deixa claro nas entrelinhas o que as suas palavras respeitosamente omitem.

Um pequeno livrito, sucinto e esclarecedor, ilustrado por pequenas pérolas selecionadas da poesia de Andrade, e que, como dizia um amigo, nos deixam com o desejo de ler mais poesia.

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segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Morte em Pleno Verão e Outros Contos by Yukio Mishima

Morte em Pleno Verão e Outros ContosMorte em Pleno Verão e Outros Contos by Yukio Mishima
My rating: 4 of 5 stars

Sete contos de Mishima, sendo que o primeiro, Morte em Pleno Verão, marca pela frieza e distanciamento da narrativa, quase indiferente ao horror da situação, e choca pela péssima tradução. Os dois últimos contos, Patriotismo e Onnagata, deslumbram e deliciam, o primeiro, muito masculino, pela tensão que cria e pela minúcia da descrição de um seppuku, o segundo, muito feminino, em marcante contraste com o anterior, pela delicadeza do triângulo amoroso entre um famoso onnagata (denominação dos atores masculinos que desempenham papéis femininos no kabuki), um seu adorador, um assistente teatral, e um jovem encenador muito inseguro.

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segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O Pecado de Porto Negro by Norberto Morais

O Pecado de Porto NegroO Pecado de Porto Negro by Norberto Morais
My rating: 4 of 5 stars

Receita para fazer "Pecado de Porto Negro"

Ingredientes:
- 1 estivador sedutor (terá de ser um dos homens mais sedutores da literatura portuguesa, caso contrário a receita não funciona)
- 1 donzela inocente e sonhadora (cheire antes de usar; terá de apresentar um cheiro inexplicável, inebriante e irresístivel)
- 1 empregado de balcão ciumento (de preferência tímido e pequeno, para a receita não ficar muito azeda)
- 1 açougueiro infeliz e misterioso (pai viúvo, que ame exageradamente a filha única)
- 1 mulato adamado (com sotaque brasileiro serve)
- paixão, humor, ciúme, sexo (tudo em doses generosas)
- umas pitadas de realismo mágico

Para preparar a receita, precisará de ter à mão, para utilizar no momento certo, um palacete assombrado, um bordel, uma praia deserta, um bar com bilhar e portas para duas ruas, e um convento de freiras.

Deite os ingredientes um por um, pela ordem indicada, num livro grande.

Leve a lume forte, tropical, numa cidadezinha portuária de uma ilha imaginária da América Latina (baía, farol, porto e armazéns, catedral, ruas, praças e becos, bordel, não esqueça o bordel, e praia isolada, de areia branca, com coqueiros e um barco naufragado).

Vá temperando a pouco e pouco, primeiro com humor, depois com paixão e sexo, finelmente com muito ciúme. Mexa com uma linguagem poderosa, um vocabulário rico e uma escrita surpreendente, mas muito lentamente, sem deixar cair na monotonia para não queimar.

Estará pronto quando: "o Sol dourava a baía de Porto Negro. (...) Deu uma volta pela sala, corda à caixa de música, e, quando a geringonça soltou as primeiras notas antigas, sentiu uma presença atrás de si. - À minha espera, franguinha? - sussurrou uma voz, tomando-a pela cintura. Ducélia fechou os olhos e, apertando contra o ventre os braços que a enlaçavam, inspirou o mundo e sorriu."

O autor, Norberto Morais, confecionou esta sua receita com Santiago Cardamomo, Ducélia Trajero, Rolindo Pio Face, Tulentino Trajero e Chalila Boé, e foi uma enorme surpresa! Provámos: o enredo tem um sabor ténue, com algumas notas de engano e surpresa, talvez desnecessárias, mas os personagens ficaram excelentes, ao nível do melhor que se faz na cozinha portuguesa contemporânea, e a escrita está verdadeiramente fabulosa, isto é, imensamente saborosa!

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quinta-feira, 31 de julho de 2014

A Câmara Clara by Roland Barthes

A Câmara ClaraA Câmara Clara by Roland Barthes
My rating: 4 of 5 stars

Encontrei este livro na seção de fotografia de uma livraria. Interessado, folheei as primeiras páginas e pareceu-me que se tratava de uma reflexão sobre o que separaria a fotografia das outras artes ou, mesmo, se a fotografia mereceria ser tratada como uma. Após a leitura, deslumbrado, devo confessar, concluo que a livraria se enganou, e este livro deveria estar na seção de filosofia.

Como muito bem diz o meu amigo Miguel Botelho "sempre que um homem olha para si próprio, o que nós vemos é o mundo". E é isso que Barthes faz em A Câmara Clara. Interroga-se sobre o que o faz gostar de uma foto e conclui que não é o tema, nem o enquadramento, nem qualquer aspeto de natureza técnica, mas, sim, o pormenor que o faz sonhar, o “acaso que nela me fere (mas também me mortifica, me apunhala).

E prossegue a sua reflexão, compreendendo, a partir de uma foto da sua mãe, recentemente falecida, que a fotografia é a prova irrefutável de que algo aconteceu, algo que foi realidade no passado: o noema da fotografia, a sua “característica inimitável”, seria, assim, o “isto foi”, e sem intermediação de um historiador, de um pintor ou de um ator.

A fotografia, conclui o autor, é agente do Tempo e da Morte e talvez possa “ter alguma relação com a «crise da Morte», que começa na segunda metade do século XIX (…) porque, numa sociedade, a Morte tem de estar em qualquer lado; se ela já não está (ou está menos) no religioso, deve estar em qualquer outra parte. Talvez nessa imagem que produz a Morte, pretendendo conservar a vida.” E é esta a contradição fundamental que constitui a sua “loucura”; é este o “êxtase fotográfico.”

A escrita é clara, bela e simples, de uma simplicidade só alcançável por quem é realmente genial.

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quinta-feira, 17 de julho de 2014

Doces Tormentas by Rui Vilhena

Doces TormentasDoces Tormentas by Rui Vilhena
My rating: 3 of 5 stars

Paulo é casado com Sílvia, que é amante de Carlos, que é casado com Marta, que é amante de Ricardo, que é casado com Henrique, que é amante de Paulo, sim, o Paulo, o marido da Sílvia! Uma sexteto amoroso, mais precisamente, três triângulos amorosos, uma tripla ménage a trois. O final não é bem previsível, pois nem todos ficam felizes para sempre...

Rui Vilhena, o autor de guiões de televonela, escreveu uma comédia burlesca, com uma narrativa fluente e alguns momentos de humor, que quase parece já adaptada ao teatro ou a uma mini-série de TV. Imagino que tal como nos guiões, a caracterização de personagens é reduzida (o ator completará a caracterização com a sua interpretação...) tal como as cenas, que embora sejam bem marcadas, quase sempre em casa de um ou outro dos casais, quase sempre às refeições (praticamente não serão precisos "takes" exteriores para o filme...), são pouco descritas.

A existência de um casal homossexual entre os três casais amigos é encarada com grande naturalidade, tal como a atração bissexual de que resultam os casos de Paulo com Henrique (gay), ou de Ricardo (gay) com Marta. A natureza do relacionamento de Henrique com Ricardo não é clarificada, ou seja não sabemos se são casados, formal ou informalmente, ou apenas namorados. É, por tudo isto, um livro muito leve, que não apela à reflexão sobre os temas subjacentes e que, depois de lido, deixa pouco rasto.

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quarta-feira, 9 de julho de 2014

A Ruptura by Helder de Sousa

A RupturaA Ruptura by Helder de Sousa
My rating: 2 of 5 stars

Heitor é um jovem, filho de uma família da alta burguesia, inconformado com a vida e com a morte, cheio de dúvidas e problemas, apaixonado por Lurdes desde a adolescência, mas que, aos 22 anos, já estudande universitário em Lisboa, "não casa com ela, nem a deixa casar", segundo um dos seus irmãos.
E porque será? Apenas podemos aventar algumas hipóteses: (a) a sua família perturbada, com a mãe, Rosa, mal-amada pelo marido capitalista que apenas a vê como a "parideira" dos filhos? (b) o catolicismo fundamentalista da família, com os seus pruridos sexuais e as críticas à pílula? (c) a sua rebeldia e a dos amigos, desprezando o casamento tradicional e advogando o amor livre? (d) a sua homossexualidade, sempre insinuada, mas nunca afirmada, que o levaria a fugir sempre às relações sexuais com a namorada mas, também, com uma das criadas que se enfia alegremente na sua cama...
A resposta não é fácil, pois o autor não é concludente ao longo das 182 páginas deste seu romance de estreia em que se repetem as cenas idílicas e campestres, as refeições e discussões familiares, em que se sucedem os meses e as estações, com as suas descrições convencionais, mas também com surpreendente canto dos trabalhadores rurais em pleno inverno ou o fumo negro saindo das chaminés em pleno verão... tudo muito suave, tudo um pouco ingénuo.

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segunda-feira, 7 de julho de 2014

Pátio D'Alfândega Meia-Noite by Álamo Oliveira

Pátio D'Alfândega Meia-NoitePátio D'Alfândega Meia-Noite by Álamo Oliveira
My rating: 3 of 5 stars

O Poeta Porreirinho morre e o médico-legista declara como causa mortis: parto não consumado por asfixia introintelectual, ou seja, o poeta morreu com um romance (o seu romance) dentro da barriga. Pior, as páginas do romance estão baralhadas, e Patachão, o grande amigo do Poeta Porreirinho, lutará denodadamente por ordenar o romance, tentando várias opções, mas nenhuma "a" certa, "a" verdadeira. Ao fazê-lo, descobre que o romance fala dos amigos comuns (a Rosa Cambadinha, a namorado do Poeta, que se suicida quando sabe da morte deste; o Graciosa, um bailarino excêntrico que dança nu na rua e faz amor com o Puto, o pescador que morrerá espancado por denunciar a especulação com o cimento para a reconstrução da cidade depois do terramoto; ou Alzira, uma prostituta com quem Patachão se entende), dos lugares da cidade onde vivem (Angra do Heroísmo, com o seu Monte Brasil, o banco verde do Pátio d'Alfândega ou o fumarento Café Atlântico). Na ânsia de ordenar e reordenar o romance para o "encontrar", Patachão começa a misturar a realidade com a ficção, e uma noite, quando encontra sentado no banco verde do Pátio um fantasma do século XVI, Linschooten, o romance e a vida real fundem-se e tudo se perde (ou se ganha), e Patachão deixa de saber se está vivo ou morto também.

Um ensaio de escrita, imaginativo e poético, que capta muito bem a solidão e angústia das ilhas, num ambiente sempre noturno ou cinzento, opressor, pesado. Um romance dentro do romance, dois num só, mas que no final se juntam para dar só um. Interessante, mas não tanto como outras obras do autor, como Até hoje: Memórias de cão ou Já Não Gosto de Chocolates.

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quinta-feira, 3 de julho de 2014

Histórias para Esquecer by Manel Zé

Histórias para Esquecer (vol. I)Histórias para Esquecer by Manel Zé
My rating: 3 of 5 stars

Episódios interessantes da Guerra Colonial Portuguesa, na maioria dramáticos e tristes (explosões de minas, escaramuças com o inimigo, acidentes, mortes e feridos...), mas alguns também divertidos, escritos com a força de alguém que lá esteve e os viveu.

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segunda-feira, 23 de junho de 2014

Teoria da Fala by Gastão Cruz

Teoria da FalaTeoria da Fala by Gastão Cruz


Reconheço a criatividade da "bocas que escutam", dos "ouvidos que cantam", da "voz que vê"; parece-me que a ausência total de sinais de pontuação, que mistura e confunde, também obriga a reler e a refletir; compreendo a coerência temática, onde as folhas, a terra, as estações, os rios, se cruzam com os órgãos da fala, cruamente e inusitadamente expostos em poesia: os dentes duros, os lábios agrestes e as gengivas, as cordas vocais, os tímpanos, o crânio liso; mas nada disto me entusiasma! Problema meu, eu sei, e por isso não me atrevo a dar "estrelitas"... outra abstenção poética.

Teoria da Fala (o primeiro poema do conjunto que dá o nome ao livro)

Cobrem a boca seca as mesmas folhas
é essa a despedida há corpo
que reduza tal ruído
é de novo o agreste som dos lábios
sob as folhas caídas

Conheces o ruído a boca vive
exactamente dessa despedida
há corpo que reduza tal ruído
é o de novo agreste som da boca
que fala destruída

PS: não, não me enganei a transcrever o poema... simplesmente, o autor não utiliza sinais de pontuação.

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Os Ovos d'Oiro by Armando Silva Carvalho

Os Ovos d'OiroOs Ovos d'Oiro by Armando Silva Carvalho


Um "gás inerte" é aquele que não reage com outros elementos. Este livrinho de poemas é feito, para mim, de "poesia inerte". Não me diz nada, não reage comigo... mas isso não quer dizer que não tenha enorme qualidade, que não desperte emoções fortes, evoque imagens belas ou soe em ritmos melódicos aos ouvidos de outros leitores... pelo que serei eu seguramente, que sou "inerte" e não a poesia de Armando Silva Carvalho! Não sei, e é por isso não me atrevo a dar-lhe estrelitas. É assim, como que uma abstenção.

Transcrevo apenas um poema (João Cabral - VI) a que não fiquei completamente "inerte", porque, ao lê-lo, me lembrei dos sorteios da FIFA.

A língua
oásis branco
pousada
sobre
as coisas.

Pedúnculo
salivando
inteiramente
inverso.

Nariz
sondando a chuva
caindo
contra
as cores.

Por
sobre
o mar
das musas
a colisão dos sonhos.

Um polvo
que procura
as impassíveis
notas.

São os vapores
da pedra
e o seu anel
de cores.

Nas rochas
moles
do gosto
o chapinhar
doente.

A contra-
gosto
os silvos
contra
o coração.

A Passionária
entrando
pelo poço
docemente.

Podemos
deitar fora
o que os cegos
inventam?

Acupunctura
d'alma.

PS: as mesmas equipas jogaram também nas edições anteriores do torneio (João Cabral - I a V) só que calharam em grupos diferentes...

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quinta-feira, 19 de junho de 2014

Donamorta: Pranto Gregoriano by Armando Silva Carvalho

Donamorta: Pranto GregorianoDonamorta: Pranto Gregoriano by Armando Silva Carvalho
My rating: 4 of 5 stars

Um dia da vida de Gregório Pamsa: precisamente o dia que se segue ao funeral da sua mãe, Donamorta. Gregório desperta lentamente, com dificuldade, masturba-se, vai fazer força para a casa de banho, responde ao vizinho que lhe bate à porta e escandaliza 3 Testemunhas de Jeová quando lhes aparece à porta meio nu, vindo do chuveiro. Na subida a seguir à Rotunda, onde o seu Mini tem um furo quando vai a caminho de se encontrar com Musalinda, surge-lhe do nada um belo rapaz, "louro, boticelliano, que traz um brinco numa das orelhas" e que lhe troca o pneu e, em troca, apenas lhe rouba um beijo na boca. O dia segue, cheio de peripécias improváveis, encontros com prostitutas, amigos e amantes, um ex-subsecretário lhe coloca na mão um maço de apontamentos relatando as aventuras de um homossexual pelas zonas de engate do Porto, e termina numa festa na casa apalaçada de Marília, onde, a altas horas, Gregório dança até desmaiar. No quartito para onde o arrastam, o louro despe-o e, depois de despido, "agarra com ambas as mãos o rosto salpicado e dá-lhe um beijo na boca. As manchas desaparecem. Ele desaparece também. (...) Gregório está nu. Está limpo. (...) E com Gregório outro dia começa. Só este livro acaba. Paz à sua alma. Aleluia."

Os primeiros parágrafos, quando Gregório desperta lentamente, fizeram-me recordar a abertura sublime de Um Homem Singular, de Christopher Isherwood. Também aqui o personagem principal luta contra a perda recente de um ente querido, também aqui vagueia pelo dia, em vários encontros e desencontros, com amigos ou desconhecidos.
A linguagem e a imagética são muito ricas, cheias ironia, por vezes de sarcasmo, muita erudição e, simultaneamente, muito nonsense que atinge por vezes as raias do onírico ou do psicadélico. Um livrinho que merece segunda leitura!

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quarta-feira, 11 de junho de 2014

Portugal - A Flor e a Foice by José Rentes de Carvalho

Portugal - A Flor e a FoicePortugal - A Flor e a Foice by José Rentes de Carvalho
My rating: 4 of 5 stars

Um repassar rápido pela História de Portugal, desde Afonso Henriques ao PREC, arrasando os mitos nacionalistas, sobretudo os que nos foram legados pelo regime de Salazar e que, de certo modo, ainda perduram poeticamente na nossa cultura e na nossa ideia de país. Quase nada nem ninguém (exceto, talvez, o Marquês de Pombal...) escapa às setas corajosas e certeiras de Rentes de Carvalho: os podres da monarquia, as vitórias pírricas nas grandes batalhas contra castelhanos e mouros em África, a ganância e a falta de escrúpulos dos Descobrimentos, a balbúrdia da República, a pequenez do salazarismo, a hipocrisia da Igreja Católica, a subjugação a interesses próprios ou de terceiros de Spínola, Otelo, Soares, Cunhal e companhia, do pós-revolução dos cravos.

Esta mediocridade dos políticos e das classes privilegiadas levaria o povo a partir em sucessivas ondas de emigração, primeiro para as Índias, depois para o Brasil e as Américas, e por fim para a Alemanha e a França, para fugir à miséria, à tristeza do país e à ausência de perspetivas de um futuro melhor. "De um ponto de vista social, a emigração portuguesa constitui a manifestação de uma forma de escravidão que subsiste ainda hoje. De um ponto de vista ético, a emigração portuguesa significa a negação constante do direito mais elementar da pessoa: o direito à vida no próprio país. De um ponto de vista político, a emigração portuguesa supõe a renúncia à revolta."

A lucidez da análise parece, no entanto, ofuscar-se à medida que a escrita se torna contemporânea dos factos, e os capítulos dedicados ao pós 25 de abril são, tal como o período que espelham, menos esclarecedores e mais confusos. Nesta fase, o autor aparenta dificuldade de distanciamento, pressente-se que toma partido, que tem opiniões próprias, mas não as apresenta claramente ao leitor, e, neste ponto, não se diferencia muito das críticas que faz aos seus compatriotas.

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domingo, 8 de junho de 2014

Retrato de Rapaz by Mário Cláudio

Retrato de RapazRetrato de Rapaz by Mário Cláudio
My rating: 3 of 5 stars

Giacomo Caprotti, o mafarrico de 10 anos, o ladrãozeco, o mais belo modelo para estátua de Apolo ou Ganimedes, é abandonado pelo pai junto de mestre Leonardo da Vinci, já então homem maduro, como aprendiz, para que o ensine e desbaste. "Aos dez anos, sabendo o que sabiam da vida as putas do Borghetto, foi com alegria que Giacomo ouviu esta ordem mais, carregada do condão de dissipar nele quanto do temor lhe restasse: «Despe-te lá!»" Leonardo deixar-se-ia enlevar pela beleza e pela irrequietude do moço, a quem apelidaria de Salai ("diabrete"), e entre os dois estabelecer-se-ia uma relação de amor que duraria quase até à morte do Artista na corte de Francisco I, rei de França, 25 anos depois.

Escrever sobre pessoas reais, de um passado distante, faz-se usualmente pela perspetiva do historiador, citando factos e tentando articulá-los e interpretá-los, ou do romancista, aderindo mais ou menos à realidade para descrever personagens históricos e enredos. Mário Cláudio constrói a sua novela sobre os factos, sobre os apontamentos do mestre nas folhas dos seus códices, sobre os seus esquiços e pinturas, mas sempre com um certo recato, uma certo estilo de narração modesto e distanciado, que não pretende ter a ousadia de saber das emoções dos personagens, dos seus pensamentos ou intenções. Leonardo, os seus discípulos Salai e Melzi, e os seus diversos patronos, aparecem assim como que envolvidos numa bruma histórica, que por vezes se adensa e não nos permite espreitar, mas que por vezes se aclara um pouco para nos deixar entrever melhor. E talvez um dos instrumentos com que Cláudio nos quis envolver nesse nevoeiro, tenha sido o estilo de escrita que escolheu, de um vocabulário riquíssimo, de uma sintaxe complexa, esparsamente pontuado por discurso direto, em que a familiaridade com as referências culturais, que aparecem sem alarde aqui e ali, é indispensável para a apreciação do texto. No final, fica-nos o prazer da leitura de tão sofisticada escrita e alguma curiosidade não satisfeita sobre o rapaz retratado e o seu amado mestre.

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segunda-feira, 2 de junho de 2014

Virtually Normal by Andrew Sullivan

Virtually NormalVirtually Normal by Andrew Sullivan
My rating: 4 of 5 stars

Andrew Sullivan apresenta ao leitor quatro grupos de argumentos relacionados com a homossexualidade na sociedade americana, expondo uma crítica racional sobre cada um:
Os Proibicionistas (com referência a Tomás de Aquino e à Bíblia) argumentam que o comportamento homossexual é anti-natural, pelo que é prejudicial à sociedade e deve ser proibido.
Os Liberacionistas (inspirados em Michel Foucault) acreditam que "homossexual" é uma etiqueta artificial que deve ser desconstruída, existindo apenas actos homossexuais.
Os Conservadores acreditam que a homossexualidade é um assunto privado e que deve ser admitido desde que não salte para a esfera pública. A política militar americana “Don't ask, don't tell” é um exemplo recente da postura Conservadora.
Os Liberais, segundo Sullivan, seguem na linha do movimento dos direitos civis dos negros norte-americanos, defendendo protecção legal para a minoria homossexual com medidas como ação afirmativa.

Sullivan conclui com uma perspectiva pessoal sobre a política ideal em relação à homossexualidade, uma posição intermédia entre a dos Conservadores e dos Liberais, em que o Estado (a coisa "pública") é neutro em relação à questão de orientação sexual (tal como deve ser em relação a sexo, raça, etc.), não se imiscuindo nos assuntos privados dos cidadãos, ao passo que é deixada liberdade total aos indivíduos (o "privado") para se comportaram em relação à orientação sexual tal como entenderem, desde que respeitem a liberdade alheia.
Segundo este ponto de vista todas as leis discriminando os homossexuais devem ser repelidas, sendo concedidos aos homossexuais todos os direitos e deveres dos heterossexuais, incluindo o direito a servir abertamente o seu país como militares e o direito ao casamento. No entanto, o Estado não deve ir mais além, isto é, legislando de forma a promover mudanças culturais que protejam os homossexuais, pelo que, por exemplo, as leis que agravam penas no caso de crimes de conteúdo homofóbico ou as leis que impõem igualdade de oportunidades em contratos entre privados, devem também ser repelidas.
Sullivan defende, no entanto, que faz parte da liberdade individual que cidadãos critiquem e desincentivem outros cidadãos em relação a comportamentos discriminatórios, isto é, é aceitável que uma empresa não contrate um funcionário por ele ser gay e também é aceitável que um cidadão escreva um artigo criticando e condenando essa empresa pela discriminação contida no seu acto; não é aceitável, no entanto, que o Estado legisle para determinar que as empresas devem procurar um equilíbrio em relação a minorias na sua contratação nem sequer para proibir a discriminação como razão para não contratação.


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terça-feira, 27 de maio de 2014

O Pecado de João Agonia | Irmã Natividade by Bernardo Santareno

O Pecado de João Agonia | Irmã NatividadeO Pecado de João Agonia | Irmã Natividade by Bernardo Santareno
My rating: 4 of 5 stars

João Agonia regressa da tropa, em Lisboa, para a casa dos pais na aldeia serrana onde todos o amam, numa noite de temporal, com os lobos a rondar. Vem homem feito, mas amargurado e tristonho, até que reencontra Toino Giesta, o filho dos vizinhos, agora um belo rapagão de 16 anos, por quem se apaixona. Mas tudo se precipita tragicamente quando chega Manuel Lamas, um camarada da tropa, que revela que João esteve preso em Lisboa...

Custa a acreditar que em meados do século XX ainda se pensasse e agisse assim em Portugal. Aliás, custaria a acreditar que episódios terríveis como este pudessem sequer acontecer se não nos chegassem periodicamente notícias de casos de honra resolvidos por lapidação ou derramamento de sangue em países do médio-oriente.

Santareno consegue, num texto de grande dramatismo e emoção, deixar uma mensagem expressiva de condenação à homofobia e de enaltecimento do amor, o amor de mãe, mas também o amor impossível de João por Toino: "JOÃO (desesperado.) Ouve cá, Toino, responde-me com o teu coração nas mãos: Um homem - o maior, o mais valente! - é capaz de subir lá acima, ao alto da Rocha Grande, e obrigar o vento norte a virar sul? Ou pode chegar ali, à beira do rio, e mandar as águas correrem ao contrário?!... Pode, Toino, diz lá?! Alguém pode fazer com que uma árvore cresça pró fundo da terra, em vez de subir pró ar?!... Quem, Toino, quem é capaz de fazer isso?!!..."

Irmã Natividade é um pequeno texto dramático, também muito belo, sobre a agitação da vida de um convento provocada pelas visões místicas e sensuais de uma freira jovem, muito ao jeito de Teresa de Ávila. O texto seria depois desenvolvido por Santareno para dar origem a "A Excomungada".

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segunda-feira, 19 de maio de 2014

O Mar Por Cima by Possidónio Cachapa

O Mar Por CimaO Mar Por Cima by Possidónio Cachapa
My rating: 3 of 5 stars

David, um rapaz tímido, chega com os pais a uma ilha dos Açores (Terceira?), para onde vai morar depois de um acidente de trabalho lhe ter cegado o pai. Recebe-os o tio Francisco, que já lhes tinha preparado uma casa na Canada dos Cavacos, junto aos penhascos sobre o mar. David tem dificuldade em integrar-se, mas encontra um amigo no Rapaz, um miúdo mais novo que é seu vizinho. Na ilha, o tio continua a abusar sexualmente de David e, quando este percebe que está apaixonado pelo Rapaz, não consegue exprimir o seu amor, perturbado por poder estar a fazer ao Rapaz o que tio lhe fazia a ele.

A história é muito bela, muito poderosa, muito melancólica, feita de amores impossíveis ou desesperados, no cenário misterioso e claustrofóbico das ilhas, mas o fluxo narrativo fragmentado, a inconstância da linha do tempo, a escrita nebulosa e enigmática, dificulta a leitura e impede uma maior identificação emocional do leitor. Apesar disso, um escritor a seguir, sem dúvida!

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segunda-feira, 12 de maio de 2014

O Sr. Ganymedes by Alfredo Gallis

O Sr. GanymedesO Sr. Ganymedes by Alfredo Gallis
My rating: 3 of 5 stars

Publicado em 1906, este é um dos primeiros romances em português que aborda abertamente a homossexualidade masculina (os outros são O Barão de Lavos, de Abel Botelho, e Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha), tomando-a para tema central do enredo.

Lígia casa-se por interesse com um rico comerciante que fez fortuna no Brasil, bastante mais velho que ela. Respeita-o, mas não o ama. Quando fica viúva, aos 32 anos de idade, regressa a Portugal e perde-se de amores por Leonel, que conhecera de criança, quando era tímido e efeminado, mas que agora crescera para se tornar num esbelto e elegante jovem que fazia suspirar as donzelas. Acontece que Leonel estava era apaixonado por Liberato, um homenzarrão rude e façanhudo, de farto bigode, que o gostava de ver vestido de dama fina.

O autor começa por avisar no prólogo que o seu livro se destina a "avisar as mulheres e castigar os efebos [efeminados] pela sua falta de brio e de sentimentos, fazendo ver aos pais que devem acostumar os seus filhos a serem homens desde pequenos, afim de que a uma educação errada e maricas se não possa atribuir a causa da adopção miserável de hábitos e costumes indignos do simples brio e respeito natural do homem pelo seu sexo." O tom moralista, no entanto, parece servir apenas para justificar o escandaloso, à época, conteúdo "erótico soft", estilo que renasceu recentemente com as "50 Sombras" e que, tal como este, foi responsável pelo enorme sucesso comercial das obras de Alfredo Gallis.

Apesar do exagero das múltiplas descrições da "terciez, venusina, do ventre" de Lígia, dos seus "seios deslumbrantes, pouco volumosos, brancos, aveludados", da "opulência rara das coxas" e da "delicadez grácil do artelho" (destinadas, provavelmente, ao público masculino), ou das belas "toilettes" e rendas finas, do bom-gosto e deslumbre dos móveis e decorações, dos rubores de emoção ou da "capitosidade excitante e amorosa como o seu defunto marido lhe houvera colhido a virgindade" (para alcançar, talvez, o público feminino), a escrita é escorreita e o autor domina o enredo, que faz avançar a bom ritmo, resultando numa leitura agradável.


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quinta-feira, 8 de maio de 2014

A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Wao by Junot Díaz

A Breve e Assombrosa Vida de Oscar WaoA Breve e Assombrosa Vida de Oscar Wao by Junot Díaz
My rating: 4 of 5 stars

Oscar, passa de menino-prodígio a "nerd" em menos de nada, e nunca conseguirá recuperar. Pelo caminho, na sua breve e assombrosa vida, cruza-se com as histórias da sua família, a mãe, Beli, azeda e agreste, que se refugiou na América, a avó de estimação, La Inca, que ficou na República Dominicana, a irmã rebelde, Lola, mas também com as inúmeras mulheres inalcançáveis por quem se apaixona, incluindo a última e fatal paixão pela prostituta reformada, Ybon, tudo, sempre à sombra da ditadura de Trujillo, o maior culeadero do mundo.
A escrita é delirante e inesperada, a ironia está sempre presente, por vezes amarga, por vezes muito divertida. Um Pulitzer mais que merecido!

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quarta-feira, 7 de maio de 2014

As Ites e o Regulamento (Os Grão-Capitães) by Jorge de Sena

Os Grão-CapitãesAs Ites e o Regulamento (Os Grão-Capitães) by Jorge de Sena
My rating: 4 of 5 stars

Uma noite de tempestade, pesadelo, sofrimento, na vida de um recruta do curso de oficiais milicianos de Penafiel, atormentado, entorpecido, enevoado, por uma faringite (ou sinutiste, otite ou outra ite qualquer) que termina surpreendentemente, em frente da porta do rígido capitão Carvalho, um adepto feroz do Regulamento.

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domingo, 4 de maio de 2014

A Grã-Canária (Os Grão-Capitães) by Jorge de Sena

Os Grão-CapitãesA Grã-Canária (Os Grão-Capitães) by Jorge de Sena
My rating: 4 of 5 stars

Os cadetes acordam nas camaratas, estremunhados, ao som do clarim. O navio vai dar entrada no porto de Las Palmas da Grã-Canária. O comandante quer apresentar-se impecável, em representação de Portugal, face a uma Espanha mergulhada em guerra civil, e na sua voz de falsete ordena: “A ordem é: lavar o navio, lavar as ventas e lavar a roupa.” Bem recebidos pelas autoridades locais, onde se misturam as sotainas negras dos padres e os “Arriba España” franquistas de braço erguido, os oficiais e cadetes são levados para um almoço demorado na encosta da montanha. Ao anoitecer, ainda enjoados do banquete mas por fim livres, procuram alívio para outra sede maior, a do desejo sexual acumulado pela longa travessia marítima.

A passagem de Jorge de Sena pela Marinha, de onde foi excluído após uma viagem no navio-escola Sagres, parece ter servido ao autor de inspiração para este conto. As razões para a exclusão nunca foram divulgadas: Mécia de Sena considera que foram de natureza política, enquanto Arnaldo Saraiva indica a falta de destreza física e militar, embora referindo que em Lisboa corriam “boatos” que falavam da suposta homossexualidade do autor. Neste conto, curiosamente, surge relatado um episódio em que o narrador e dois dos seus melhores amigos cadetes são insultados como “paneleiros” e “comunistas”; o autor do insulto será, posteriormente e já a bordo do navio, alvo de violenta agressão pelo Bravo, um dos insultados, que o amarra e viola, só sendo dominado pelos amigos, “arquejante, com espuma nos lábios, de sexo em riste, (…) rugindo ainda entre os dentes cerrados: - Seu leproso, seu filho da puta, quem é que é comunista?”

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sexta-feira, 25 de abril de 2014

Boa Noite (Os Grão-Capitães) by Jorge de Sena

Os Grão-CapitãesBoa Noite (Os Grão-Capitães) by Jorge de Sena
My rating: 5 of 5 stars

Boa noite é um conto em quatro atos, surpreendente pela sua densidade e pela profundidade da construção do seu personagem principal. No primeiro ato, os devaneios noturnos de um homem no seu quarto de umas águas-furtadas de Lisboa são interrompidos pela chegada do seu colega de quarto (e de divã) com uma prostituta que, estranhando a situação com que se depara, pergunta se está a mais. No segundo, descobrimos que o homem tem 32 anos e é, na verdade, um artista, um intelectual, um surrealista que cita Botto e Breton, que especula sobre as vantagens do sexo entre homens e discute o natural, o vício, a convenção social e a assunção do desejo (“A beleza não existe, e quando existe não dura. A beleza não é mais que o desejo premente que nos sacode… O resto, é literatura.”), tudo para impressionar um jovem e belo rapaz louro de 18 anos, que acaba por conseguir atrair ao seu quarto da mansarda. É outra vez de noite, no terceiro ato, quando o artista se gaba, exagerando, perante os amigos, à volta de uma mesa de café, das suas aventuras com o rapaz louro. Finalmente, no quarto ato, o rapaz, ainda mal refeito da experiência com o surrealista, mas sem conseguir deixar de pensar nele, deixa-se cair num banco da Avenida da Liberdade, onde é abordado por uma prostituta que o arrasta consigo com alguma dificuldade, sem lhe conseguir afastar as dúvidas sobre a natureza da sua sexualidade.

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Capangala Não Responde (Os Grão-Capitães) by Jorge de Sena

Os Grão-CapitãesCapangala Não Responde (Os Grão-Capitães) by Jorge de Sena
My rating: 4 of 5 stars

Durante a guerra colonial em Angola, três soldados ficam isolados na mata, rodeados pelo inimigo. O medo da morte, solta confissões e a agressividade masculina, que leva à provocação machista, de carácter fortemente sexual e homofóbico, e à violência física.


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